quarta-feira, 13 de maio de 2009

DIREITO CONSTITUCIONAL DO HOMEM OU DO AMBIENTE?

I - Considerações introdutórias

O objecto deste trabalho centra-se na determinação da perspectiva adoptada pela Constituição da República Portuguesa, nomeadamente em relação ao Direito do Ambiente. É de sublinhar a importância dos problemas do ambiente, importância esta que leva o progresso a todo o custo a ceder perante a necessidade (nova) de manter e restaurar um ambiente sadio. Tem havido uma tomada de consciência da parte de todos sobre os problemas gerados por atentados que se têm multiplicado por todo o mundo face aos bens ambientais e sobre a necessidade de lutar contra tais problemas e de os resolver. Daqui decorre a necessidade sentida pelos juristas de levar a cabo um tratamento disciplinar das questões ambientais, relacionando-as com os conhecimentos provenientes das ciências naturais e técnicas. Actualmente o problema do ambiente tem um acentuado interesse entre os juristas, nomeadamente por se tratar de um campo que lhes coloca novas e complexas questões.
Surgem assim grandes e complexas discussões e divergências sobre o conceito de ambiente e sobre qual será a melhor abordagem jurídica. O balanço entre o Antropocentrismo e o Ecocentrismo apela à necessidade de dissecar os termos das perspectivas que irão ser analisadas, essencialmente para uma melhor compreensão da questão em análise.
Começarei por analisar a origem e evolução dos termos em causa. Posteriormente será feita uma explanação da evolução constitucional em matéria do Ambiente, fundamental para um enquadramento histórico-sistemático do Art.66º da Constituição. De seguida será feita uma exposição sobre a perspectiva adoptada pelo legislador na qual será referida a minha opinião. Por fim será feita uma análise das consequências da opção tomada pelo legislador constitucional.



II - Antropocentrismo VS Ecocentrismo

O Antropocentrismo vem do Renascimento e tem a sua origem na Grécia (do Grego: “Antropos” que significa Humano e “Kentron” que significa Centro). Este termo era usado para designar a concepção que considerava que a Humanidade deve permanecer no centro do entendimento dos humanos, ou seja, que o Universo deve ser avaliado de acordo com a sua relação com o Homem.
Hoje em dia Antropocentrismo é usado para denominar as doutrinas ou perspectivas intelectuais que tomam como único paradigma de juízo as particularidades da espécie humana, mostrando sistematicamente que o único ambiente conhecido é o apto á existência humana.
É um termo que pode até mesmo ter um sentido depreciativo, quando usado no sentido de desvalorização das outras espécies do planeta, chegando mesmo a estar associado á degradação ambiental, visto que segundo esta perspectiva a Natureza deveria estar subordinada aos seres humanas. ”O Homem no centro das atenções” é, a meu ver, a expressão que melhor reflecte o entendimento dos que perfilham esta concepção.
Adoptar uma visão Antropocêntrica do Ambiente é perfilhar as doutrinas que defendem que a tutela do Ambiente se deve fazer tendo por base, as necessidades humanas. Segundo este entendimento os bens naturais estão ao serviço do homem e são protegidos nessa perspectiva. O homem protege o Ambiente para se proteger a si mesmo.

Já o Ecocentrismo é mais recente. Este termo surgiu no final do Século XX e designa as correntes filosóficas que entendem que as acções e pensamentos do Homem se devem centrar no Meio Ambiente, que está acima de tudo e de todos. É um entendimento anti humanista e fundamentalmente característico dos movimentos Ecologistas.
Adoptar uma visão Ecocentrica do Ambiente é perfilhar as doutrinas que defendem que o Meio Ambiente tem uma dignidade própria, tem autonomia e não existe única e exclusivamente para satisfazer as necessidades humanas. Essa dignidade de que goza é fundamento para a sua tutela enquanto tal.



III - Breve nota sobre a evolução Constitucional em matéria do Ambiente

De modo a melhor compreender a perspectiva adoptada pelo legislador constitucional em matéria do Ambiente, nomeadamente no que respeita ao artigo 66º da CRP, é fundamental acompanhar a sua origem e evolução.
O Direito do Ambiente teve a sua origem no Direito Internacional, contagiando depois os vários ordenamentos jurídicos internos. Inicialmente os Estados resistiram à incorporação das normas internacionais ambientais, pois os recursos naturais situados no seu território haviam sido geridos por estes desde sempre e sem limitações de origem externa. Esta afeição dos Estados aos seus recursos naturais foi um obstáculo à execução destas normas.
Em 1968 surgem as primeiras manifestações das preocupações dos Estados com o Ambiente, fortemente motivadas por catástrofes ambientais geradoras de graves consequências para a Natureza: duas Declarações do conselho da Europa: A Carta da Água sobre a protecção dos recursos hídricos e a Declaração de Princípios sobre a luta contra a poluição atmosférica; e uma Resolução da Assembleia-geral das Nações Unidas 2398/XXIII que oficialmente convocou a realização da conferência de Estocolmo, a primeira conferência mundial para a discussão de problemas relacionados com a protecção do meio ambiente. A primeira pedra internacional estava lançada e não tardou em atingir o plano interno. No contexto Europeu a integração na Comunidade Europeia e o Tratado de Roma despoletaram a necessidade de protecção e gestão ambiental.
Em Portugal o acolhimento do valor Ambiente pela ordem jurídica constitucional é feito pela Constituição de 1976 cujo Artigo 66º foi, com efeito, o primeiro artigo ambiental no panorama constitucional português. Artigo 66º tinha quatro números:
nº1:Consagrava o direito de todos os cidadãos a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, acompanhado do dever de o defender;
nº2:Etabeleciam-se as quatro prioridades de acção do Estado e dos poderes públicos e privados no âmbito da protecção do Ambiente;
nº3:Previa os pedidos indemnizatórios por violação do direito do Ambiente previsto no nº1;
nº4:A protecção ambiental era enquadrada na promoção da qualidade de vida.
As revisões constitucionais (sete até hoje) alteraram, e por vezes até profundamente, o texto da Lei Fundamental. O artigo 66º permaneceu praticamente intacto na revisão de 1982.,sofrendo uma ligeira alteração na redacção do seu nº3 que passou a distinguir a lesão de bens naturais e a lesão directa na esfera pessoal para efeitos de indemnização.
Foi em 1989 que o Art.66º sofreu a sua primeira reforma significativa: a alínea b)foi complementada com uma referência ao equilibrado desenvolvimento socio-económico e os números 3 e 4 desapareceram.
Na 4ª Revisão Constitucional o Art.66º foi novamente alterado: passou a incluir uma referência ao desenvolvimento sustentável no nº2,conceito já consagrado em documentos internacionais relativos ao Ambiente (Relatório “Bruntland” da Comissão Mundial para o Ambiente e o Desenvolvimento), atribuindo aos Cidadãos e ao Estado a tarefa de promoção do aproveitamento racional dos recursos naturais, salvaguardando a sua capacidade de renovação e a estabilidade ecológica.
A ideia básica de desenvolvimento sustentável reconduz-se á indispensabilidade de conformação de acções humanas ambientalmente relevantes de forma a garantir a qualidade do Ambiente para as gerações futuras. É também este o sentido do Tratado de Amesterdão de 1999 e positivamente plasmado como principio estruturante do Tratado Comunitário.
Actualmente o nº2 contém 4 alíneas, sendo de realçar que entre 1976 e 1997 o número de alíneas deste duplicou. Esta inclusão sucessiva poderia até inquinar o próprio nº2 que ao ver o seu conteúdo tão alargado, principalmente por inúmeros bens jurídicos que se encontram já regulados por outros normativos constitucionais, corre o risco de se tornar vago e demasiado extenso. (Neste sentido: Prof. Carla Amado Gomes). No entanto a mim parece-me compreensível a extensão do número de alíneas visto que Portugal tem compromissos assumidos perante a Comunidade Europeia que tem que cumprir, sendo um deles a missão de preservação da Natureza, e é natural que a Lei fundamental acompanhe a tomada desses novos desafios.
Há algumas críticas a este artigo, (tanto ao artigo 66º como à própria constituição em si) nomeadamente o facto de o mesmo não definir nem distinguir ambiente e qualidade de vida. Ambiente permanece um conceito aberto, sujeito á manipulação de cada um, visto que o próprio objectivo do Ambiente é ele mesmo indeterminado.As sucessivas alterações ao art.66º reflectem a evolução das preocupações constitucionais com o Ambiente que começaram por ser do presente para passarem a ser do presente e para o futuro.



IV – Perspectiva adoptada pelo Artigo 66º da CRP.

“A definição dos contornos da realidade com base na qual se constrói o Direito do Ambiente está condicionada pela pré-compreenção que se tiver relativamente ao quid a colocar sobre a alçada do Direito”( Carla Amado Gomes).
Há um grande relevo na opção entre uma perspectiva essencialmente antropocêntrica, em que a defesa do ambiente é feita como o objectivo principal, ou mesmo único, de defender a vida humana, ou Ecocêntrica, em que o ambiente já é tutelado em si mesmo, procurando-se a defesa e promoção da natureza como um valor novo. Esta questão tem sido suscitada e discutida com alguma intensidade continuando a suscitar as maiores dúvidas: deverá proteger-se o ambiente pelo próprio ambiente: relativamente ao valor que ele tem em si e em face aos direitos que a comunidade deverá gozar ou, pelo contrário, deverá proteger-se o ambiente na medida em que se pretende apenas assegurar condições dignas para a sua existência?
Actualmente subsiste uma grande divergência que separa grande parte da doutrina sobre a perspectiva adoptada pelo legislador constitucional neste artigo. Importa realçar que o que está aqui em causa é saber se: O direito constitucional regula o Direito do Ambiente, visando..
A) Proteger o próprio Ambiente: Vendo o ambiente como um valor em si e aceitando, porventura, a existência de direitos da natureza: Perspectiva Ecocentrica

OU

B) Proteger o Homem: considerando a defesa do ambiente como um meio de defesa do homem e da vida: Perspectiva Antropocêntrica.

Estamos perante pré-compreensões do ambiente. Há quem defenda que:”O ambiente é um mundo humanamente construído e conformado (…). Não existem, pois, ‘ambientes naturais’, ‘enclaves próximos da natureza’, pois o objecto central da protecção jurídico-ambiental diz respeito aos eventuais efeitos da adopção de certas medidas do homem relativamente aos elementos naturais da vida e a respectiva retroacção sobre os próprios homens.”Trata-se de uma concepção Antropocêntrica do Direito do Ambiente, adoptada por Gomes Canotilho e perfilhada por Fernando Condesso que acrescenta:”Independentemente dos seus beneficiários, destinatário do direito é apenas o Homem”.
Por outro lado há quem defenda que a:”natureza tem que ser protegida também em função dela mesma, como um valor em si.” (Freitas do Amaral).

No entanto parece que a Constituição aponta para mais do que um sentido. Senão vejamos. Começando pela epígrafe, podemos facilmente constatar que este artigo alia o ambiente a qualidade de vida. O legislador ao remeter o conceito de ambiente ao que permita uma qualidade de vida humana adopta uma perspectiva Antropocêntrica E fá-lo também no nº1 do Artº66,ao afirmar que todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado. A ligação entre ambiente e qualidade de vida acaba por consagrar o Direito ao Ambiente como um Direito do Homem, neste caso até mesmo como um Direito Fundamental. Estamos perante uma afirmação Antropocêntrica, na medida em que, se reporta às preocupações jurídicas com a defesa do Ambiente, designadamente em termos de obrigações-atribuições constitucionalizadas do Estado. Podemos apontar aqui para uma concepção Antropocêntrica nesta ligação entre o Ambiente e a qualidade de vida porque aqui é realçada a preocupação com o bem jurídico Ambiente, considerando-o essencial para a existência dos seres humanos e a subsistência da espécie.
No nº2 do mesmo artigo66º é estabelecido que incumbe ao estado defender o ambiente e promover a efectivação dos direitos ambientais, constituindo tarefa fundamental do Estado nos termos do Artigo 9º alíneas d) e e). Para o Prof. Vasco Pereira da Silva estamos perante:”( …. ) a consagração de um principio jurídico objectivo que se impõe a todo o ordenamento, estabelecendo finalidades de tutela ecológica a atingir.”
Ponderadas as opções do legislador podemos afirmar que, relativamente a esta questão, não se pode dar uma resposta em termos de opção radical por uma ou outra das perspectivas. E mais: nem Antropocentrismo nem Ecocentrismo, mas antes uma realidade complexa, feita de complementariedades e de contradições.
Por um lado temos a consagração do Direito do Ambiente como direito fundamental reportando o conceito de ambiente ao ser humano e à satisfação das suas necessidades. É estipulado o direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, como direito do homem com assento na Lei Fundamental. Trata-se aqui de estabelecer um direito subjectivo das pessoas relativamente ao meio-ambiente, ou seja, de uma tutela subjectiva.Por outro lado estipula-se uma tutela objectiva de bens ambientais, já que se atribui ao Estado a tarefa de “defender a natureza e o ambiente. Podemos concluir que o legislador constitucional tem evoluído de uma perspectiva exclusivamente antropocêntrica para uma perspectiva antropocêntrica moderada por fins de tutela ambiental ecológica.Tudo indica que devemos ser cuidadosos para não nos deixarmos guiar por visões extremistas que possam descurar a efectividade e exequibilidade das normas que regulam o Direito do Ambiente. Partindo de uma base antropocêntrica moderada por fins ecológicos o legislador constitucional adaptou a Lei Fundamental ás imposições comunitárias e exigências actuais. Ao impor um dever positivo, de agir na sua defesa, e negativo, no sentido de não agir na sua destruição, o legislador foi acertivo e cuidadoso. A adopção por uma das perspectivas supracitadas seria contraproducente e teria consequências, nomeadamente dificuldades de execução por um lado (se adoptasse uma visão exclusivamente ecocentrica) e um aproveitamento irracional dos recursos naturais por não salvaguardar a sua capacidade de renovação e estabilidade ecológica (caso adoptasse uma perspectiva exclusivamente antropocêntrica.

Pelo supra exposto, relativamente a esta questão acredito que o antropocentrismo ecológico (tal como sugere o Prof. Vasco Pereira da Silva) parece ser a perspectiva que é mais adequada e a que o próprio legislador constitucional acolheu. Ao fazê-lo assume as preocupações ecológicas necessárias e indispensáveis para um desenvolvimento sustentável em nome do Homem e do futuro da terra, visto que ambos estão necessariamente indissociáveis numa relação de interdependência. E fê-lo quando partiu dos direitos das pessoas temperando-os com uma simultânea tutela objectiva ambiental.



V- Consequências da opção tomada pelo legislador constitucional

Ao adoptar esta perspectiva Antropocêntrica temperada pelas vantagens de uma pitada de Ecocentrismo, o legislador constitucional consagra um conceito de ambiente unitário integrado numa vertente ecológica.,o que tem implicações a vários níveis.
Podemos começar por realçar a opção do legislador por distribuir a responsabilidade ambiental pelos vários sujeitos. Ao Estado incumbe, como tarefa fundamental, a prossecução da efectivação dos direitos ambientais. Estas finalidades de tutela ecológica a atingir são impostas a todo o ordenamento que deve dar exequibilidade a esta imposição. Estamos aqui perante um dever de agir, de proteger, de regular. Há uma obrigação política, legislativa, administrativa e penal. Foi um despertar para a necessidade de envolvimento do Estado numa tarefa que é feita em nome de um ambiente saudável, para garantir um desenvolvimento sustentável. Surge aqui uma verdadeira política de ambiente que tem subjacente um conceito ecológico de desenvolvimento sustentável. Conceito este que expandido é compatível com uma densificação normativa no campo do estado constitucional ecológico de forma a tornar transparente a articulação entre o desenvolvimento justo e duradouro e solidariedade com as gerações futuras. Acrescente-se uma promoção de uma política fiscal compatibilizadora, prevenindo e controlando a poluição e uma promoção da educação ambiental na medida em que devem ser erguidas as infra-estruturas para a transmissão de uma consciência ecológica.
No entanto o legislador ao optar por uma abordagem personalista do bem ambiente acaba por hesitar entre a concepção restrita e a concepção ampla de ambiente, deixando à mercê de equívocos a efectiva posição jurídica que relaciona cada cidadão com os bens naturais e acabou por criar algumas dúvidas em torno da questão da eventual indemnizibilidade dos danos provocados a estes bens.
Por outro lado o legislador faz impender sobre cada cidadão, através da sua acção em concreto, deveres de conteúdo diversificado em razão do impacto causado ao ambiente. Temos aqui a atribuição de deveres ambientais gerais positivos e negativos.

Com base numa valoração ponderada dos diversos factores em confronto,podemos concluir que a adopção por uma perspectiva temperada, balançando entre o Antropocentrismo e o Ecocentrismo através da atribuição ao direito do ambiente do duplo imperativo de tarefa fundamental e direito fundamental permitiu abrir caminho a uma política ambiental equilibrada e orientada, sem deixar de fazer impender sobre os principais interessados o dever de preservar e não destruir. Permite a exequibilidade das finalidades da tutela ecológica a atingir amparada pela protecção jurídica individual, ao consagrar o direito ao ambiente um direito fundamental.