segunda-feira, 30 de março de 2009

ANIMAIZINHOS ou QUE DIRIA LEONA HEMLSLEY


Que diria Leona Hemlsley - milionária norte americana, que faleceu em Agosto deste ano, deixando em herança à sua cadelinha de estimação, Trouble, 12 milhões de dólares – se lhe dissermos que os animais não são verdadeiros titulares de qualquer direito subjectivo, nem sequer do direito mínimo à vida?
Ou que pensarão os seus netos, que apenas receberam 5 milhões, confrontados com o facto de a avó ter deixado parte da sua fortuna a uma “coisa”, que se poderia equiparar a uma bola, um livro ou qualquer objecto trivial?
São Tomas dizia que era lícito matar um ser vivente, porque todas as coisas existiam para um determinado fim, e segundo uma hierarquia, e os animais existiriam em função do Homem.
René Descartes teorizava o estatuto dos animais como meros objectos, por não terem alma, nem consciência, nem sensibilidade. Aplicar-se-ia então, com toda a razão, o regime das coisas: eram propriedade dos donos na mesma medida que uma bicicleta, um relógio ou uma caixa de sapatos.
A razão é um atributo que separa uns dos outros [ os seres humanos dos animais], constituindo a sua falta o motivo por que aqueles não são capazes de direitos e obrigações, dado que lhes falta a noção do bem, do justo e do conveniente, não lhes podem ser impostos os preceitos da lei, para que seja por eles obedecida e observada, diz António Costa, no seu O Direito e os direitos dos Animais.
Com efeito, este é o tratamento que a maior parte dos códigos civis ocidentais da actualidade conferem aos animais; o de coisa: o espanhol, o italiano, o português, entre muitos outros, colocam os animais na definição residual do que sejam coisas móveis, contra a taxatividade dos imóveis. Os donos dos animais – os proprietários – respondem pelos danos causados pelos animais que utilizar em seu próprio interesse (502º do CC).
Descartes chegou mesmo a dizer, em Animals are machines, que o choro de um cachorro não era coisa diferente de uma máquina a ranger por falta de óleo.
Nos últimos séculos, muitas foram/são as teorias que tentaram arrancar desta lógica, para construir considerações sobre o estatuto do Animal, que seria algo mais que uma coisa; linhas de pensamento que lançaram e impulsionaram o debate, e a consciência da necessidade de Protecção do Animal – reflectindo-se na própria evolução do Direito.

Uma das vozes mais radicais nesta evolução é a de Peter Singer, que construiu o Principio da Igual Consideração de Interesses Semelhantes. Singer relativiza a distinção entre seres vivos humanos e animais, baseada na linguagem e racionalidade – e exemplifica com os bebés ou adultos com graves deficiências mentais, seres humanos que não apresentam as características acima referidas. A sua visão é tão extremada, que chega mesmo a comparar a vida de um bebé recém-nascido à de uma lesma.
Diz Singer que, a construir a diferença entre Homens e animais não humanos a partir de características como a razão, a consciência de si, a noção de passado e futuro, a comunicação, enfim, chegaríamos à conclusão que haveria pessoas não Humanas – os grandes primatas – e Homens que não seriam pessoas – o bebé recém-nascido, o adulto com profundas deficiências mentais. A característica vital, que conferiria a um ser vivo o direito à consideração de interesses semelhantes, seria a capacidade de sofrimento ou felicidade: a senciência. Propõe então, a partir desta controversa linha de raciocínio, o Principio da Igual Consideração de Interesses Semelhantes, que significaria a equiparação do valor da vida, humana e não humana, com este traço comum. Tudo se trataria, afinal, de avaliar o maior sofrimento, e actuar em função disso.
Pete Singer só considera legítimo, por exemplo, matar animais para comer, em casos extremos, como os esquimós, que não teriam outra alternativa – um raciocínio de acordo com o princípio da necessidade. O conflito dos interesses humanos e animais, não humanos, seria resolvido em favor do menor sofrimento, equiparando-se à partir os valores.

Esta teoria, assim construída, e apesar de bem intencionada, é demasiado radical – corresponde já a um eco-fundamentalismo, que levado a um extremo, conduz a absurdos como a personificação de flores e a consideração do gorila sobre o homem adulto deficiente ou o bebé recém-nascido. Parte, no entanto, de uma premissa muito justa: as únicas diferenças entre a dor, o prazer e o stress nos animais e em nós consistem nas palavras para o dizer (Andreé Langaney, citado por Chapouthier, no livro de António Costa, acima referido); parte do principio de que os animais são mesmo mais que coisas.

Em 1978, vem ser redigida a Declaração Universal dos Direitos do Animal, em Paris, que reconhece esta “dignidade” dos Animais, em termos bastante mais generosos que aos códigos civis, vg o Português, que tratam o animal como coisa; em termos radicais, mesmo. Afinal, logo no preâmbulo se reconhece que todos os animais possuem direitos. E vai mais longe, no seu art. 14º, ao consagrar que os direitos do animal devem ser defendidos pela lei, como os direitos do homem. Volta a perguntar-se se afinal os animais podem, ou não, ser titulares de direitos.

È que, de uma mão, parece absurda a ideia de impor a um animal o cumprimento de uma lei – a própria ideia de lei; um sujeito de direito é, por definição, uma pessoa, capaz de compreender, livre para escolher. Mas os nascituros, os bebés e os incapazes, não obstante não terem deveres, são titulares de direitos fundamentais; as pessoas colectivas não são pessoas, e no entanto, titulares de situações jurídicas; ao próprio feto é reconhecido o direito mínimo de vida.

O reconhecimento da dignidade dos animais e sua protecção também pode ser construído de uma forma mais objectiva: o Ambiente como valor em si mesmo imporia o respeito pelas espécies que habitam o Planeta (visão ecocêntrica), e a própria dignidade humana obrigaria ao respeito por todos os seres vivos, uma espécie de sinal de maturidade humana e sociedade civilizada (visão antropocêntrica).
Nesta linha, aparece a visão que refere os animais como objecto das relações jurídicas – o bem jurídico que é protegido, como as árvores, os recursos ou a camada de ozono. E, claro está, nada nem ninguém pode ser objecto e sujeito da relação ao mesmo tempo. Mas também aqui António Costa relativiza esta conclusão, com o exemplo das sociedades comerciais, que têm personalidade jurídica, e podem ser transaccionadas.

No final das contas, a terceira via do direito alemão parece ser a mais indicada: nem os animais são tratados como coisas, nem é forçada uma ginástica jurídico-dogmática que lhes atribua a titularidade de direitos subjectivos; nem são meros objectos, nem tem a vida animal o mesmo valor que a vida humana. O art. 90º do BGB diz que os animais não são coisas, mas devem tutelados por lei específica, e especifica a tutela em caso de dano ao animal.

Afinal, tem todo o sentido que abramos aqui um grau intermédio entre as Coisas e os Humanos, ponto no qual possamos desenvolver uma real e efectiva protecção dos Animais, sem desconsiderar o facto de também eles serem seres vivos, com uma dignidade própria, que ultrapassa meros objectivos de dignidade humana; e ultrapassando a velha visão do animal-coisa, que se apresenta como chocante à Sociedade de hoje.
Leona Remsley ficaria decerto muito mais descansada.

sexta-feira, 27 de março de 2009

Apreciação crítica da prática desportiva de tiro aos pombos

O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Novembro de 2004, relativo à problemática questão da protecção dos animais versus a prática desportiva de tiro aos pombos, teve, na minha perspectiva, uma decisão/fundamentação controversa em alguns pontos.

Comecemos pela lei que serviu de base à mesma decisão: a Lei de protecção dos animais (Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, posteriormente alterada pela Lei n.º 19/2002, de 31 de Julho).

Como refere o acórdão, esta lei visa a protecção dos animais “(...) contra violências cruéis ou desumanas ou gratuitas, para as quais não exista justificação ou tradição cultural bastante (...)”, não tendo, contudo, subjacente a atribuição de direitos aos animais, até porque, como se infere dos artigos 202.º/1 e 205.º/1 CC, os animais são considerados coisas móveis, não sendo titulares de direitos.

Ora, o artigo 1.º/1 da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, proíbe qualquer tipo de violência injustificada contra animais e estabelece um critério para se aferir dessa violência injustificada: actos que consistam na desnecessária morte, sofrimento cruel e prolongado ou graves lesões a um animal. Reconheça-se, no entanto, que a lei, na tentativa de definir o que seja violência injustificada, recorre, a meu ver, a um feixe de conceitos indeterminados, sujeitos, como tal, a várias interpretações possíveis, o que por si, não resolve toda esta controvérsia.

Os recorridos alegaram que não existe actualmente uma protecção constitucional dos animais, o que não deixa de ser intolerável...

A prática desportiva em causa tem, segundo as palavras do acórdão, longa tradição cultural no nosso país e adiante veremos como se relaciona esta tradição cultural com a necessidade de protecção dos animais.

De facto, da leitura do artigo 1.º da Lei em causa não resulta qualquer proibição expressa à prática desta actividade desportiva. Mas deve isto querer dizer que, na realidade, devesse ser assim?

Este problema da prática de tiro aos pombos anda, de certa forma, “de mãos dadas” com a problemática questão da realização de touradas em Portugal, proibida no artigo 3.º/3 da Lei supra mencionada, mas que no n.º 4 se excepciona tal proibição caso haja de se atender a “(...) tradições locais que se tenham mantido de forma ininterrupta, pelo menos, nos 50 anos anteriores à entrada em vigor do presente diploma, como expressão de cultura popular, nos dias em que o evento histórico se realize”... Deveria ser assim? Dever-se-ia permitir esta excepção? A meu ver, não!

Feito este pequeno parêntesis, e voltando à questão que agora nos ocupa, na prática de tiro aos pombos são utilizados alvos vivos, sendo-lhes arrancadas previamente algumas penas da cauda com a finalidade de os mesmos atingirem um voo menos estável. Pode esta preparação prévia à prática em si do tiro com chumbo ser considerada uma violação da integridade física dos animais em causa, quando a própria Declaração Universal dos Direitos do Animal, proclamada na Assembleia da Unesco, no dia 27 de Janeiro de 1978, vem proibir, no seu artigo 3.º, a submissão “(...) a maus tratos e a actos cruéis”?

Vejamos o que entendeu o STJ. Em primeiro lugar, cumpre referir que este Tribunal entendeu, como já supra mencionei, que à luz da lei civil portuguesa, os animais são considerados coisas móveis, nos termos dos artigos 202.º/1, 205.º/1 e 213.º/3 CC. Não sendo, assim, titulares de direitos, a sua protecção deve ser encarada antes como um dever das pessoas para com os animais “(...) além do mais porque se trata de seres que com elas partilham a natureza(...)”. Até este ponto, nenhum problema se levanta.

O Tribunal entendeu, então, que o arranque de algumas penas da cauda, conforme atrás já referi, não constituía sofrimento cruel e prolongado, nem lesão geradora de sofrimento cruel. Entendimento duvidoso, do meu ponto de vista... Pode até não ser geradora de sofrimento cruel ou prolongado, mas não deixa de constituir uma lesão à integridade física dos mesmos, ainda eu não grave, mas certamente humilhante e degradante, no mínimo (pense-se, por exemplo, que ao proceder ao tal arranque, os pombos deixam de ter uma coisa que lhes é inata: um voo completamente estável).

Em jeito de conclusão, o Tribunal afirma o seguinte: “Conforme resulta da experiência comum, os pombos reproduzem-se facilmente, não há risco da sua extinção, e a própria prática desportiva em causa constitui um facto de promoção do crescimento da espécie”.

Mais uma vez, este conjunto de afirmações por parte do Tribunal, com todo o devido respeito, parece-me dúbia, por várias razões que passarei a elencar:

1.Quanto à afirmação de que os pombos se reproduzem facilmente, não havendo, então, risco da sua extinção, quero apenas deixar alguns pontos assentes. O facto de estes animais, pela sua natureza, se reproduzirem facilmente não justifica que sejam utilizados como alvos numa prática desportiva, de onde apenas resultam duas coisas: a morte dos mesmos e a satisfação pessoal do insaciável ser humano.
Outra questão ainda: segundo o Tribunal, só devem ser, então, protegidos os animais que se encontrem em vias de extinção? Não me parece...

2.Relativamente à afirmação de que esta prática desportiva constitui um facto de promoção do crescimento da espécie, fica esta questão no ar: como pode o desporto em causa (uma vez que dele resulta a morte da espécie animal em causa) promover o crescimento da mesma?! Parece uma contradição!
Mas não ficam por aqui as críticas a esta decisão judicial. Outro ponto do acórdão que gostaria de discutir é o referente ao “(...) confronto entre a preservação dos animais na sua vida e integridade física e o seu sacrifício socialmente útil e justificado ou útil em função do interesse das pessoas ou da comunidade”. Pergunta-se: pode o interesse das pessoas ou da comunidade ser promovido a expensas da violação da integridade física e até da própria vida dos animais em causa, quando o interesse se refere a uma prática desportiva? É que se o sacrifício fosse para satisfação de uma necessidade vital do ser humano, como a sua alimentação para garantia da sua sobrevivência (e isto não se aplica apenas aos pombos), as coisas já não se passavam do mesmo modo. Uma coisa é a utilização de animais para promover (de forma, a meu ver, cruel, à semelhança do que sucede com os touros de morte) o direito que os seres humanos têm à sua diversão e a práticas desportivas; outra coisa completamente diferente é a utilização de certas espécies animais para satisfação (inevitável...) de um interesse de sobrevivência, que se prende naturalmente com a sua alimentação! Assim, mais uma vez, pode o ser humano dar de barato a vida destes animais para satisfazer um seu interesse desportivo sem qualquer utilidade (mas, que para outras pessoas, terá...)?

Quanto à justificação desta prática desportiva pelo Tribunal, atente-se ainda nas seguintes afirmações:

- “(...) longa tradição integrante da cultura de uma comunidade humana (...)”;

- não ser a morte inflingida aos pombos “(...) meramente gratuita ou improvisada, porque se inscreve numa prática desportiva já antiga, integrada na tradição, como processo de ligação do passado ao presente e, consequentemente, faz parte do nosso património cultural (...)”.
Deve a tradição cultural em causa prevalecer sobre a integridade física dos animais em causa? Como pode a morte dos mesmos para mero recreio dos seres humanos fazer parte do nosso património cultural? Não deveria antes ser ao contrário: ser a protecção dos animais parte integrante do nosso património cultural? Não é tarefa fundamental do Estado proteger e valorizar o património cultural do povo português e defender a natureza e o ambiente (artigo 9.º/e) CRP), aqui se englobando necessariamente, do meu ponto de vista, a protecção de todas as espécies animais?

Enfim, é a lei e a Constituição que temos e que devemos respeitar, embora muitas vezes, umas alterações que acompanhassem a evolução da sociedade em geral, fossem de louvar...

Em suma, o STJ entendeu que a utilização destes animais nas provas de tiro ao voo “(...) não se revela cruel” para os mesmos e, portanto, esta prática desportiva não é proibida no ordenamento jurídico português! Embora com muitas reservas da minha parte, há que respeitar a decisão do Tribunal...

ANTROPOCENTRISMO VERSUS ECOCENTRISMO

I – Da génese das concepções

A raiz da discussão em torno da melhor perspectiva a adoptar na tutela do ambiente, sem prejuízo de ter ganho, apenas, o seu dinamismo essencial na década de sessenta/setenta, remonta já de um passado mais distante.

Civilizações antigas como as que habitavam o Rio Nilo, Egipto, rios Tigre e Eufrates, na Mesopotâmia, os rios Ganges e Hindu, na Índia e os rios Amarelo e Tang Tse Kiang na china, demonstravam preocupação, engenho e empenho na melhoria do conhecimento do seu meio ambiente. Foi a preocupação com a produção de bens e sustento familiar que fomentou a compreensão dos fenómenos ambientais, conferindo-lhes consciência de ecosistema. (Mariza Regina de Sousa, A ética ecológica, Discussão entre perspectivas antropocêntricas e ecocêntricas, Relatório de Mestrado, 2005/2006, p 1).

As civilizações ocidentais, por seu turno, demonstraram sempre um maior pendor por uma concepção antropocêntrica, cuja razão surge, em grande medida, ligada a um materialismo generalizado e norteado por uma ideia de crescimento económico como matiz essencial do desenvolvimento social.

II – O córtex de duas perspectivas

Afirmava Kant que “o homem como pessoa é o centro da criação, podendo actuar no mundo em que convive com outros seres e com eles interage, podendo inclusive dominá-los”. O pensamento do autor está aliado a uma concepção de “antropocentrismo transcendental” (cit. Mariza Regina de Sousa… p. 6) que conduz ao entendimento de que o homem é o senhor absoluto do meio ambiente, visão que se, por uma lado, é marcada de forma exacerbada por um teor profundamente humanista, é, também, por outro, tingida por um feixe de utilitarismo do qual não se consegue desprender e que inquina, por conseguinte, toda a concepção face às necessidades actuais.

A concepção kantiana vem, pois, ser criticada por filósofos como Hanna Arendt e Hans Jonas que, no geral, vão arguir que a concepção kantiana é inconciliável com uma necessidade mínima tutelar do meio ambiente (Ver, nesta sede, Mariza Regina de Sousa… p. 7).

A ideia do antropocentrismo assenta, pois, na ideia do homem como centro de um universo que, transposto para uma lógica ambiental, significa entender o homem no centro do ambiente. O ambiente deve, segundo esta lógica, servir as potencialidades do homem.

Fora as más interpretações – como é exemplo disso a interpretação deturpada de alguns textos bíblicos como o versículo 28.º do capítulo 2.º, do livro da génesis de onde consta “crescei e multiplicai-vos e enchei a terra, e subjugai e dominai.” – o antropocentrismo evoluiu para a ideia de que, se é certo que o homem está no centro do ambiente, é necessário que a tutela do bem ambiente passe por uma tutela do homem e que não seja motivada, em exclusivo, no fundamento de que o ambiente deva ser tutelado por si só. Dever-se-á tutelar o ambiente, não porque existem direitos dos peixes, das aves e das plantas, mas porque o homem precisa do ambiente para assegurar a sua sobrevivência. Nesse sentido, a tutela ambiental surge a título meramente incidental (Ver, neste âmbito, Vasco Pereira da Silva, Verde cor de direito: lições de direito do ambiente, Coimbra, Almedina, 2002, pp. 26 e ss.)

No que concerne ao ecocentrismo, importa notar que acabou por ser, inicialmente, na sua facção fundamentalista, uma via de resposta ao exagero pugnado pelo antropocentrismo, também ele, numa primeira fase, extremado. Como menciona Vasco Pereira da Silva, “o surgimento da “questão ambiental” andou também associado, ou foi contemporâneo, de outros fenómenos de ordem política, social e cultural, designadamente o movimento de “Maio de 68”, a “revolução hippie” e a “doutrina” do flower power”… (cit. Vasco Pereira da Silva, Lições… p. 18).

O ecocentrismo traz, de forma patente, a ideia de que o ambiente deve ser protegido por si só. Nesse sentido, afirma Mariza Regina de Sousa que “a “a crise do Estado-Providência”, veio mostrar, entre outras coisas, que a protecção do ambiente devia ser encarada como um problema da sociedade que necessitava de solução política…Certamente o meio ambiente ao ser encarado como um problema de política e não da sociedade, teria uma atenção particularizada.” (cit. Maria Regina de Sousa… pp. 20 e 21.).

III – A perspectiva da nossa Lei Fundamental

A vulnerabilidade da natureza passou a ser evidente. Essa evidência motivou, quer as instâncias internacionais, quer os Estados que, no plano interno, adoptaram iniciativas normativas ambientais. Neste âmbito, refira-se o Pacto internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, de 1966, onde afirma no seu artigo 12.º, n.º 1, um dever de promoção da qualidade do meio ambiente por parte dos Estados; a Conferência de Estocolmo de 1972, que teve origem na primeira conferência Mundial sobre a questão ambiental, convocada na Assembleia-geral da Organização das Nações Unidas; o Acto Único Europeu, que veio a ser introduzido no Tratado de Roma.

No plano interno, Surge-nos a referência de que os Estados Unidos da América (doravante, EUA) foram dos primeiros países a promulgar uma lei geral do ambiente, o National Envirommental Policy Act, de 1 de Janeiro de 19970 (Veja-se a referência feita por Milena Silva Rouxinol, Boletim da Faculdade de Coimbra, Vol. 82, Coimbra, 2006, pp. 697 e ss.)

Em Portugal, na nossa Lei Fundamental, surge-nos a previsão do artigo 66.º, que proclama um “direito ao ambiente” que, em conjugação com o artigo 9.º, al. e), está intrinsecamente ligado à sua protecção como tarefa fundamental do Estado.

É entendimento generalizado de que a visão constitucional sobre esta temática é essencialmente antropocêntrica. As marcas constantes do artigo 66.º, com efeito, parecem ser evidentes, na medida em que se alia ambiente e qualidade de vida, pois, nos termos do n.º1 do referido preceito, “todos têm direito a um ambiente de vida humano”. Mas são também patentes as marcas de conciliação de perspectivas, isto é, as referências que permitem fundir entendimentos, na medida em que a Constituição parece reconhecer individualismo ao meio ambiente “proteger paisagens… garantir a conservação da natureza” (Cfr. Artigo 66.º, n.º2, al. c)), o que indicia sensibilidade para com aqueles que entendem o ambiente como merecedor de tutela por si só.

Dir-se-á que as questões são estanques, mas, a nosso ver, a posição que formalmente se adopte terá essencialmente subjacente um entendimento bem sedimentado acerca de como entender o direito do ambiente e se ele é só direito do ambiente ou, pelo contrário, direito ao ambiente (Sobre esta discussão atente-se a Vasco Pereira da Silva…, pp. 25 – 35 e 84 – 103; Milena Silva Rouxinol… pp. 707 e ss; Mónica Augusto Benevides Baptista, Direito ao ambiente e interesse difuso como pontos de referência indispensáveis para a caracterização do bem jurídico ambiental, Relatório de Mestrado, Lisboa, 2006, pp. 3 e ss.).

Este nosso entendimento parte essencialmente da premissa de que se na génese de uma concepção antropocêntrica que entende que a tutela da natureza passa, necessariamente, pela tutela do homem, essa tutela só tem, a nosso ver, garantias de que será eficaz se, efectivamente, a ela estiver associado um crivo subjectivo que funcione como ponto concretizador dessa tutela. Ora, esse crivo terá que passar precisamente pelo reconhecimento de um direito subjectivo ao ambiente. Assim, se se entende que o que está no centro é o homem e que o ambiente só é tutelado a título incidental, parece que a concepção antropocêntrica terá efectivamente que recorrer a um expediente que seja capaz de reconhecer que as ingerências alheias e prejudiciais a uma posição de vantagem podem ser fonte de tutela judicial (sobre se a forma de protecção do ambiente deve passar, primacialmente, por um entendimento de que essa tutela é um fim do estado ou, pelo contrário, pelo entendimento de que a tutela deve ser feita porque o direito ao ambiente é um direito fundamental, ver Invo Von Munch, A protecção do meio ambiente na Constituição, RJUA, n.º1, Junho, 1994, p. 41 – 53.)

Face ao exposto, discordamos com Carla Amado Gomes quando entende que, no seu antropocentrismo alargado, ainda que com laivos de ecocentrismo, falta ao direito do ambiente essa dimensão subjectiva inerente a um direito fundamental. Na perspectiva da autora, o direito ao ambiente não é, pois, “uma posição jurídica subjectiva que se traduz na susceptibilidade de aproveitamento individual de um determinado bem, mas antes na possibilidade de utilização desse bem, estreitamente aliada a um dever fundamental de utilização racional, numa perspectiva de solidariedade, quer com os restantes membros da comunidade actualmente considerada, quer com as gerações futuras.” (Cit. Carla Amado Gomes, O Ambiente como objecto e os objectos do Direito do ambiente, in Textos dispersos de Direito do ambiente, Lisboa, AAFDL, 2005, Vol. I, pp. 22 e 23.)

IV – Tomada de posição de iure condendo

Face ao exposto, parece-nos exacto o seguinte: Independentemente da perspectiva que se adopte, parece que todos chegámos a um consenso. O ambiente deve ser tutelado de forma eficaz, pois a sobrevivência humana depende disso. Tão pouco importa, parece-nos, que a tutela se faça a título incidental ou directamente, ponto assente é que o ambiente veja a sua preservação assegurada. Parecem-nos, pois, acertadas as palavras de Mônica Augusto Benevides Baptista quando afirma que “seja como for, considerando ou não o ambiente um direito que possui autonomia, a verdade é que não se pode usufruir ilimitadamente de seus recursos em desobediência aos limites impostos por lei, pois sendo um bem juridicamente relevante, já não fica mais ao alento das agressões que lhe são provocadas.” (Cit. Mónica Augusto Benevides Baptista, Direito ao ambiente… p. 5).

Se se criar na consciência da pessoa humana que o ambiente é algo que lhe pertence e que, assim sendo, por ela deve ser acarinhado e estimado, talvez, porque a pessoa humana sempre terá uma motivação mais egoísta que altruísta, esta seja a melhor via de solução para que o homem se preocupe em tutelar o ambiente que o rodeia. Ela tem, contudo, um reconhecido óbice que, quanto a nós, passa por se perspectivar que num futuro próximo, se o homem deixar de depender do ambiente, ainda que parcialmente, aquilo que passar a ser inútil deixará de ser acarinhado, estimado e, por conseguinte, protegido, sendo deixado sem tutela. Mas enquanto a realidade se mantém assente nestas premissas, a ideia que pugnamos, com tantos outros, parece ser efectivamente a melhor solução.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Post inaugural

A presente secção destina-se à colocação de trabalhos de investigação realizados em substituição ou em complemento da participação regular na secção Blog.

Bon(s) trabalho(s)!