sexta-feira, 27 de março de 2009

Apreciação crítica da prática desportiva de tiro aos pombos

O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Novembro de 2004, relativo à problemática questão da protecção dos animais versus a prática desportiva de tiro aos pombos, teve, na minha perspectiva, uma decisão/fundamentação controversa em alguns pontos.

Comecemos pela lei que serviu de base à mesma decisão: a Lei de protecção dos animais (Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, posteriormente alterada pela Lei n.º 19/2002, de 31 de Julho).

Como refere o acórdão, esta lei visa a protecção dos animais “(...) contra violências cruéis ou desumanas ou gratuitas, para as quais não exista justificação ou tradição cultural bastante (...)”, não tendo, contudo, subjacente a atribuição de direitos aos animais, até porque, como se infere dos artigos 202.º/1 e 205.º/1 CC, os animais são considerados coisas móveis, não sendo titulares de direitos.

Ora, o artigo 1.º/1 da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, proíbe qualquer tipo de violência injustificada contra animais e estabelece um critério para se aferir dessa violência injustificada: actos que consistam na desnecessária morte, sofrimento cruel e prolongado ou graves lesões a um animal. Reconheça-se, no entanto, que a lei, na tentativa de definir o que seja violência injustificada, recorre, a meu ver, a um feixe de conceitos indeterminados, sujeitos, como tal, a várias interpretações possíveis, o que por si, não resolve toda esta controvérsia.

Os recorridos alegaram que não existe actualmente uma protecção constitucional dos animais, o que não deixa de ser intolerável...

A prática desportiva em causa tem, segundo as palavras do acórdão, longa tradição cultural no nosso país e adiante veremos como se relaciona esta tradição cultural com a necessidade de protecção dos animais.

De facto, da leitura do artigo 1.º da Lei em causa não resulta qualquer proibição expressa à prática desta actividade desportiva. Mas deve isto querer dizer que, na realidade, devesse ser assim?

Este problema da prática de tiro aos pombos anda, de certa forma, “de mãos dadas” com a problemática questão da realização de touradas em Portugal, proibida no artigo 3.º/3 da Lei supra mencionada, mas que no n.º 4 se excepciona tal proibição caso haja de se atender a “(...) tradições locais que se tenham mantido de forma ininterrupta, pelo menos, nos 50 anos anteriores à entrada em vigor do presente diploma, como expressão de cultura popular, nos dias em que o evento histórico se realize”... Deveria ser assim? Dever-se-ia permitir esta excepção? A meu ver, não!

Feito este pequeno parêntesis, e voltando à questão que agora nos ocupa, na prática de tiro aos pombos são utilizados alvos vivos, sendo-lhes arrancadas previamente algumas penas da cauda com a finalidade de os mesmos atingirem um voo menos estável. Pode esta preparação prévia à prática em si do tiro com chumbo ser considerada uma violação da integridade física dos animais em causa, quando a própria Declaração Universal dos Direitos do Animal, proclamada na Assembleia da Unesco, no dia 27 de Janeiro de 1978, vem proibir, no seu artigo 3.º, a submissão “(...) a maus tratos e a actos cruéis”?

Vejamos o que entendeu o STJ. Em primeiro lugar, cumpre referir que este Tribunal entendeu, como já supra mencionei, que à luz da lei civil portuguesa, os animais são considerados coisas móveis, nos termos dos artigos 202.º/1, 205.º/1 e 213.º/3 CC. Não sendo, assim, titulares de direitos, a sua protecção deve ser encarada antes como um dever das pessoas para com os animais “(...) além do mais porque se trata de seres que com elas partilham a natureza(...)”. Até este ponto, nenhum problema se levanta.

O Tribunal entendeu, então, que o arranque de algumas penas da cauda, conforme atrás já referi, não constituía sofrimento cruel e prolongado, nem lesão geradora de sofrimento cruel. Entendimento duvidoso, do meu ponto de vista... Pode até não ser geradora de sofrimento cruel ou prolongado, mas não deixa de constituir uma lesão à integridade física dos mesmos, ainda eu não grave, mas certamente humilhante e degradante, no mínimo (pense-se, por exemplo, que ao proceder ao tal arranque, os pombos deixam de ter uma coisa que lhes é inata: um voo completamente estável).

Em jeito de conclusão, o Tribunal afirma o seguinte: “Conforme resulta da experiência comum, os pombos reproduzem-se facilmente, não há risco da sua extinção, e a própria prática desportiva em causa constitui um facto de promoção do crescimento da espécie”.

Mais uma vez, este conjunto de afirmações por parte do Tribunal, com todo o devido respeito, parece-me dúbia, por várias razões que passarei a elencar:

1.Quanto à afirmação de que os pombos se reproduzem facilmente, não havendo, então, risco da sua extinção, quero apenas deixar alguns pontos assentes. O facto de estes animais, pela sua natureza, se reproduzirem facilmente não justifica que sejam utilizados como alvos numa prática desportiva, de onde apenas resultam duas coisas: a morte dos mesmos e a satisfação pessoal do insaciável ser humano.
Outra questão ainda: segundo o Tribunal, só devem ser, então, protegidos os animais que se encontrem em vias de extinção? Não me parece...

2.Relativamente à afirmação de que esta prática desportiva constitui um facto de promoção do crescimento da espécie, fica esta questão no ar: como pode o desporto em causa (uma vez que dele resulta a morte da espécie animal em causa) promover o crescimento da mesma?! Parece uma contradição!
Mas não ficam por aqui as críticas a esta decisão judicial. Outro ponto do acórdão que gostaria de discutir é o referente ao “(...) confronto entre a preservação dos animais na sua vida e integridade física e o seu sacrifício socialmente útil e justificado ou útil em função do interesse das pessoas ou da comunidade”. Pergunta-se: pode o interesse das pessoas ou da comunidade ser promovido a expensas da violação da integridade física e até da própria vida dos animais em causa, quando o interesse se refere a uma prática desportiva? É que se o sacrifício fosse para satisfação de uma necessidade vital do ser humano, como a sua alimentação para garantia da sua sobrevivência (e isto não se aplica apenas aos pombos), as coisas já não se passavam do mesmo modo. Uma coisa é a utilização de animais para promover (de forma, a meu ver, cruel, à semelhança do que sucede com os touros de morte) o direito que os seres humanos têm à sua diversão e a práticas desportivas; outra coisa completamente diferente é a utilização de certas espécies animais para satisfação (inevitável...) de um interesse de sobrevivência, que se prende naturalmente com a sua alimentação! Assim, mais uma vez, pode o ser humano dar de barato a vida destes animais para satisfazer um seu interesse desportivo sem qualquer utilidade (mas, que para outras pessoas, terá...)?

Quanto à justificação desta prática desportiva pelo Tribunal, atente-se ainda nas seguintes afirmações:

- “(...) longa tradição integrante da cultura de uma comunidade humana (...)”;

- não ser a morte inflingida aos pombos “(...) meramente gratuita ou improvisada, porque se inscreve numa prática desportiva já antiga, integrada na tradição, como processo de ligação do passado ao presente e, consequentemente, faz parte do nosso património cultural (...)”.
Deve a tradição cultural em causa prevalecer sobre a integridade física dos animais em causa? Como pode a morte dos mesmos para mero recreio dos seres humanos fazer parte do nosso património cultural? Não deveria antes ser ao contrário: ser a protecção dos animais parte integrante do nosso património cultural? Não é tarefa fundamental do Estado proteger e valorizar o património cultural do povo português e defender a natureza e o ambiente (artigo 9.º/e) CRP), aqui se englobando necessariamente, do meu ponto de vista, a protecção de todas as espécies animais?

Enfim, é a lei e a Constituição que temos e que devemos respeitar, embora muitas vezes, umas alterações que acompanhassem a evolução da sociedade em geral, fossem de louvar...

Em suma, o STJ entendeu que a utilização destes animais nas provas de tiro ao voo “(...) não se revela cruel” para os mesmos e, portanto, esta prática desportiva não é proibida no ordenamento jurídico português! Embora com muitas reservas da minha parte, há que respeitar a decisão do Tribunal...