segunda-feira, 30 de março de 2009

ANIMAIZINHOS ou QUE DIRIA LEONA HEMLSLEY


Que diria Leona Hemlsley - milionária norte americana, que faleceu em Agosto deste ano, deixando em herança à sua cadelinha de estimação, Trouble, 12 milhões de dólares – se lhe dissermos que os animais não são verdadeiros titulares de qualquer direito subjectivo, nem sequer do direito mínimo à vida?
Ou que pensarão os seus netos, que apenas receberam 5 milhões, confrontados com o facto de a avó ter deixado parte da sua fortuna a uma “coisa”, que se poderia equiparar a uma bola, um livro ou qualquer objecto trivial?
São Tomas dizia que era lícito matar um ser vivente, porque todas as coisas existiam para um determinado fim, e segundo uma hierarquia, e os animais existiriam em função do Homem.
René Descartes teorizava o estatuto dos animais como meros objectos, por não terem alma, nem consciência, nem sensibilidade. Aplicar-se-ia então, com toda a razão, o regime das coisas: eram propriedade dos donos na mesma medida que uma bicicleta, um relógio ou uma caixa de sapatos.
A razão é um atributo que separa uns dos outros [ os seres humanos dos animais], constituindo a sua falta o motivo por que aqueles não são capazes de direitos e obrigações, dado que lhes falta a noção do bem, do justo e do conveniente, não lhes podem ser impostos os preceitos da lei, para que seja por eles obedecida e observada, diz António Costa, no seu O Direito e os direitos dos Animais.
Com efeito, este é o tratamento que a maior parte dos códigos civis ocidentais da actualidade conferem aos animais; o de coisa: o espanhol, o italiano, o português, entre muitos outros, colocam os animais na definição residual do que sejam coisas móveis, contra a taxatividade dos imóveis. Os donos dos animais – os proprietários – respondem pelos danos causados pelos animais que utilizar em seu próprio interesse (502º do CC).
Descartes chegou mesmo a dizer, em Animals are machines, que o choro de um cachorro não era coisa diferente de uma máquina a ranger por falta de óleo.
Nos últimos séculos, muitas foram/são as teorias que tentaram arrancar desta lógica, para construir considerações sobre o estatuto do Animal, que seria algo mais que uma coisa; linhas de pensamento que lançaram e impulsionaram o debate, e a consciência da necessidade de Protecção do Animal – reflectindo-se na própria evolução do Direito.

Uma das vozes mais radicais nesta evolução é a de Peter Singer, que construiu o Principio da Igual Consideração de Interesses Semelhantes. Singer relativiza a distinção entre seres vivos humanos e animais, baseada na linguagem e racionalidade – e exemplifica com os bebés ou adultos com graves deficiências mentais, seres humanos que não apresentam as características acima referidas. A sua visão é tão extremada, que chega mesmo a comparar a vida de um bebé recém-nascido à de uma lesma.
Diz Singer que, a construir a diferença entre Homens e animais não humanos a partir de características como a razão, a consciência de si, a noção de passado e futuro, a comunicação, enfim, chegaríamos à conclusão que haveria pessoas não Humanas – os grandes primatas – e Homens que não seriam pessoas – o bebé recém-nascido, o adulto com profundas deficiências mentais. A característica vital, que conferiria a um ser vivo o direito à consideração de interesses semelhantes, seria a capacidade de sofrimento ou felicidade: a senciência. Propõe então, a partir desta controversa linha de raciocínio, o Principio da Igual Consideração de Interesses Semelhantes, que significaria a equiparação do valor da vida, humana e não humana, com este traço comum. Tudo se trataria, afinal, de avaliar o maior sofrimento, e actuar em função disso.
Pete Singer só considera legítimo, por exemplo, matar animais para comer, em casos extremos, como os esquimós, que não teriam outra alternativa – um raciocínio de acordo com o princípio da necessidade. O conflito dos interesses humanos e animais, não humanos, seria resolvido em favor do menor sofrimento, equiparando-se à partir os valores.

Esta teoria, assim construída, e apesar de bem intencionada, é demasiado radical – corresponde já a um eco-fundamentalismo, que levado a um extremo, conduz a absurdos como a personificação de flores e a consideração do gorila sobre o homem adulto deficiente ou o bebé recém-nascido. Parte, no entanto, de uma premissa muito justa: as únicas diferenças entre a dor, o prazer e o stress nos animais e em nós consistem nas palavras para o dizer (Andreé Langaney, citado por Chapouthier, no livro de António Costa, acima referido); parte do principio de que os animais são mesmo mais que coisas.

Em 1978, vem ser redigida a Declaração Universal dos Direitos do Animal, em Paris, que reconhece esta “dignidade” dos Animais, em termos bastante mais generosos que aos códigos civis, vg o Português, que tratam o animal como coisa; em termos radicais, mesmo. Afinal, logo no preâmbulo se reconhece que todos os animais possuem direitos. E vai mais longe, no seu art. 14º, ao consagrar que os direitos do animal devem ser defendidos pela lei, como os direitos do homem. Volta a perguntar-se se afinal os animais podem, ou não, ser titulares de direitos.

È que, de uma mão, parece absurda a ideia de impor a um animal o cumprimento de uma lei – a própria ideia de lei; um sujeito de direito é, por definição, uma pessoa, capaz de compreender, livre para escolher. Mas os nascituros, os bebés e os incapazes, não obstante não terem deveres, são titulares de direitos fundamentais; as pessoas colectivas não são pessoas, e no entanto, titulares de situações jurídicas; ao próprio feto é reconhecido o direito mínimo de vida.

O reconhecimento da dignidade dos animais e sua protecção também pode ser construído de uma forma mais objectiva: o Ambiente como valor em si mesmo imporia o respeito pelas espécies que habitam o Planeta (visão ecocêntrica), e a própria dignidade humana obrigaria ao respeito por todos os seres vivos, uma espécie de sinal de maturidade humana e sociedade civilizada (visão antropocêntrica).
Nesta linha, aparece a visão que refere os animais como objecto das relações jurídicas – o bem jurídico que é protegido, como as árvores, os recursos ou a camada de ozono. E, claro está, nada nem ninguém pode ser objecto e sujeito da relação ao mesmo tempo. Mas também aqui António Costa relativiza esta conclusão, com o exemplo das sociedades comerciais, que têm personalidade jurídica, e podem ser transaccionadas.

No final das contas, a terceira via do direito alemão parece ser a mais indicada: nem os animais são tratados como coisas, nem é forçada uma ginástica jurídico-dogmática que lhes atribua a titularidade de direitos subjectivos; nem são meros objectos, nem tem a vida animal o mesmo valor que a vida humana. O art. 90º do BGB diz que os animais não são coisas, mas devem tutelados por lei específica, e especifica a tutela em caso de dano ao animal.

Afinal, tem todo o sentido que abramos aqui um grau intermédio entre as Coisas e os Humanos, ponto no qual possamos desenvolver uma real e efectiva protecção dos Animais, sem desconsiderar o facto de também eles serem seres vivos, com uma dignidade própria, que ultrapassa meros objectivos de dignidade humana; e ultrapassando a velha visão do animal-coisa, que se apresenta como chocante à Sociedade de hoje.
Leona Remsley ficaria decerto muito mais descansada.