sexta-feira, 27 de março de 2009

ANTROPOCENTRISMO VERSUS ECOCENTRISMO

I – Da génese das concepções

A raiz da discussão em torno da melhor perspectiva a adoptar na tutela do ambiente, sem prejuízo de ter ganho, apenas, o seu dinamismo essencial na década de sessenta/setenta, remonta já de um passado mais distante.

Civilizações antigas como as que habitavam o Rio Nilo, Egipto, rios Tigre e Eufrates, na Mesopotâmia, os rios Ganges e Hindu, na Índia e os rios Amarelo e Tang Tse Kiang na china, demonstravam preocupação, engenho e empenho na melhoria do conhecimento do seu meio ambiente. Foi a preocupação com a produção de bens e sustento familiar que fomentou a compreensão dos fenómenos ambientais, conferindo-lhes consciência de ecosistema. (Mariza Regina de Sousa, A ética ecológica, Discussão entre perspectivas antropocêntricas e ecocêntricas, Relatório de Mestrado, 2005/2006, p 1).

As civilizações ocidentais, por seu turno, demonstraram sempre um maior pendor por uma concepção antropocêntrica, cuja razão surge, em grande medida, ligada a um materialismo generalizado e norteado por uma ideia de crescimento económico como matiz essencial do desenvolvimento social.

II – O córtex de duas perspectivas

Afirmava Kant que “o homem como pessoa é o centro da criação, podendo actuar no mundo em que convive com outros seres e com eles interage, podendo inclusive dominá-los”. O pensamento do autor está aliado a uma concepção de “antropocentrismo transcendental” (cit. Mariza Regina de Sousa… p. 6) que conduz ao entendimento de que o homem é o senhor absoluto do meio ambiente, visão que se, por uma lado, é marcada de forma exacerbada por um teor profundamente humanista, é, também, por outro, tingida por um feixe de utilitarismo do qual não se consegue desprender e que inquina, por conseguinte, toda a concepção face às necessidades actuais.

A concepção kantiana vem, pois, ser criticada por filósofos como Hanna Arendt e Hans Jonas que, no geral, vão arguir que a concepção kantiana é inconciliável com uma necessidade mínima tutelar do meio ambiente (Ver, nesta sede, Mariza Regina de Sousa… p. 7).

A ideia do antropocentrismo assenta, pois, na ideia do homem como centro de um universo que, transposto para uma lógica ambiental, significa entender o homem no centro do ambiente. O ambiente deve, segundo esta lógica, servir as potencialidades do homem.

Fora as más interpretações – como é exemplo disso a interpretação deturpada de alguns textos bíblicos como o versículo 28.º do capítulo 2.º, do livro da génesis de onde consta “crescei e multiplicai-vos e enchei a terra, e subjugai e dominai.” – o antropocentrismo evoluiu para a ideia de que, se é certo que o homem está no centro do ambiente, é necessário que a tutela do bem ambiente passe por uma tutela do homem e que não seja motivada, em exclusivo, no fundamento de que o ambiente deva ser tutelado por si só. Dever-se-á tutelar o ambiente, não porque existem direitos dos peixes, das aves e das plantas, mas porque o homem precisa do ambiente para assegurar a sua sobrevivência. Nesse sentido, a tutela ambiental surge a título meramente incidental (Ver, neste âmbito, Vasco Pereira da Silva, Verde cor de direito: lições de direito do ambiente, Coimbra, Almedina, 2002, pp. 26 e ss.)

No que concerne ao ecocentrismo, importa notar que acabou por ser, inicialmente, na sua facção fundamentalista, uma via de resposta ao exagero pugnado pelo antropocentrismo, também ele, numa primeira fase, extremado. Como menciona Vasco Pereira da Silva, “o surgimento da “questão ambiental” andou também associado, ou foi contemporâneo, de outros fenómenos de ordem política, social e cultural, designadamente o movimento de “Maio de 68”, a “revolução hippie” e a “doutrina” do flower power”… (cit. Vasco Pereira da Silva, Lições… p. 18).

O ecocentrismo traz, de forma patente, a ideia de que o ambiente deve ser protegido por si só. Nesse sentido, afirma Mariza Regina de Sousa que “a “a crise do Estado-Providência”, veio mostrar, entre outras coisas, que a protecção do ambiente devia ser encarada como um problema da sociedade que necessitava de solução política…Certamente o meio ambiente ao ser encarado como um problema de política e não da sociedade, teria uma atenção particularizada.” (cit. Maria Regina de Sousa… pp. 20 e 21.).

III – A perspectiva da nossa Lei Fundamental

A vulnerabilidade da natureza passou a ser evidente. Essa evidência motivou, quer as instâncias internacionais, quer os Estados que, no plano interno, adoptaram iniciativas normativas ambientais. Neste âmbito, refira-se o Pacto internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, de 1966, onde afirma no seu artigo 12.º, n.º 1, um dever de promoção da qualidade do meio ambiente por parte dos Estados; a Conferência de Estocolmo de 1972, que teve origem na primeira conferência Mundial sobre a questão ambiental, convocada na Assembleia-geral da Organização das Nações Unidas; o Acto Único Europeu, que veio a ser introduzido no Tratado de Roma.

No plano interno, Surge-nos a referência de que os Estados Unidos da América (doravante, EUA) foram dos primeiros países a promulgar uma lei geral do ambiente, o National Envirommental Policy Act, de 1 de Janeiro de 19970 (Veja-se a referência feita por Milena Silva Rouxinol, Boletim da Faculdade de Coimbra, Vol. 82, Coimbra, 2006, pp. 697 e ss.)

Em Portugal, na nossa Lei Fundamental, surge-nos a previsão do artigo 66.º, que proclama um “direito ao ambiente” que, em conjugação com o artigo 9.º, al. e), está intrinsecamente ligado à sua protecção como tarefa fundamental do Estado.

É entendimento generalizado de que a visão constitucional sobre esta temática é essencialmente antropocêntrica. As marcas constantes do artigo 66.º, com efeito, parecem ser evidentes, na medida em que se alia ambiente e qualidade de vida, pois, nos termos do n.º1 do referido preceito, “todos têm direito a um ambiente de vida humano”. Mas são também patentes as marcas de conciliação de perspectivas, isto é, as referências que permitem fundir entendimentos, na medida em que a Constituição parece reconhecer individualismo ao meio ambiente “proteger paisagens… garantir a conservação da natureza” (Cfr. Artigo 66.º, n.º2, al. c)), o que indicia sensibilidade para com aqueles que entendem o ambiente como merecedor de tutela por si só.

Dir-se-á que as questões são estanques, mas, a nosso ver, a posição que formalmente se adopte terá essencialmente subjacente um entendimento bem sedimentado acerca de como entender o direito do ambiente e se ele é só direito do ambiente ou, pelo contrário, direito ao ambiente (Sobre esta discussão atente-se a Vasco Pereira da Silva…, pp. 25 – 35 e 84 – 103; Milena Silva Rouxinol… pp. 707 e ss; Mónica Augusto Benevides Baptista, Direito ao ambiente e interesse difuso como pontos de referência indispensáveis para a caracterização do bem jurídico ambiental, Relatório de Mestrado, Lisboa, 2006, pp. 3 e ss.).

Este nosso entendimento parte essencialmente da premissa de que se na génese de uma concepção antropocêntrica que entende que a tutela da natureza passa, necessariamente, pela tutela do homem, essa tutela só tem, a nosso ver, garantias de que será eficaz se, efectivamente, a ela estiver associado um crivo subjectivo que funcione como ponto concretizador dessa tutela. Ora, esse crivo terá que passar precisamente pelo reconhecimento de um direito subjectivo ao ambiente. Assim, se se entende que o que está no centro é o homem e que o ambiente só é tutelado a título incidental, parece que a concepção antropocêntrica terá efectivamente que recorrer a um expediente que seja capaz de reconhecer que as ingerências alheias e prejudiciais a uma posição de vantagem podem ser fonte de tutela judicial (sobre se a forma de protecção do ambiente deve passar, primacialmente, por um entendimento de que essa tutela é um fim do estado ou, pelo contrário, pelo entendimento de que a tutela deve ser feita porque o direito ao ambiente é um direito fundamental, ver Invo Von Munch, A protecção do meio ambiente na Constituição, RJUA, n.º1, Junho, 1994, p. 41 – 53.)

Face ao exposto, discordamos com Carla Amado Gomes quando entende que, no seu antropocentrismo alargado, ainda que com laivos de ecocentrismo, falta ao direito do ambiente essa dimensão subjectiva inerente a um direito fundamental. Na perspectiva da autora, o direito ao ambiente não é, pois, “uma posição jurídica subjectiva que se traduz na susceptibilidade de aproveitamento individual de um determinado bem, mas antes na possibilidade de utilização desse bem, estreitamente aliada a um dever fundamental de utilização racional, numa perspectiva de solidariedade, quer com os restantes membros da comunidade actualmente considerada, quer com as gerações futuras.” (Cit. Carla Amado Gomes, O Ambiente como objecto e os objectos do Direito do ambiente, in Textos dispersos de Direito do ambiente, Lisboa, AAFDL, 2005, Vol. I, pp. 22 e 23.)

IV – Tomada de posição de iure condendo

Face ao exposto, parece-nos exacto o seguinte: Independentemente da perspectiva que se adopte, parece que todos chegámos a um consenso. O ambiente deve ser tutelado de forma eficaz, pois a sobrevivência humana depende disso. Tão pouco importa, parece-nos, que a tutela se faça a título incidental ou directamente, ponto assente é que o ambiente veja a sua preservação assegurada. Parecem-nos, pois, acertadas as palavras de Mônica Augusto Benevides Baptista quando afirma que “seja como for, considerando ou não o ambiente um direito que possui autonomia, a verdade é que não se pode usufruir ilimitadamente de seus recursos em desobediência aos limites impostos por lei, pois sendo um bem juridicamente relevante, já não fica mais ao alento das agressões que lhe são provocadas.” (Cit. Mónica Augusto Benevides Baptista, Direito ao ambiente… p. 5).

Se se criar na consciência da pessoa humana que o ambiente é algo que lhe pertence e que, assim sendo, por ela deve ser acarinhado e estimado, talvez, porque a pessoa humana sempre terá uma motivação mais egoísta que altruísta, esta seja a melhor via de solução para que o homem se preocupe em tutelar o ambiente que o rodeia. Ela tem, contudo, um reconhecido óbice que, quanto a nós, passa por se perspectivar que num futuro próximo, se o homem deixar de depender do ambiente, ainda que parcialmente, aquilo que passar a ser inútil deixará de ser acarinhado, estimado e, por conseguinte, protegido, sendo deixado sem tutela. Mas enquanto a realidade se mantém assente nestas premissas, a ideia que pugnamos, com tantos outros, parece ser efectivamente a melhor solução.