segunda-feira, 25 de maio de 2009

O Princípio da Precaução

De entre os vários princípios basilares da política ambiental há um – o princípio da precaução – que tem suscitado alguma polémica, sobretudo quando contraposto a um outro – o princípio da prevenção.

Este último, o princípio da prevenção, tem uma origem muito anterior ao princípio da precaução, sendo que já em 1958 fora adoptado pela Convenção sobre Alto-mar, assinada em Geneva[1], e tem hoje consagração expressa no art. 66.º, n.º 2, al. a), da Constituição da República Portuguesa.

Assim, actualmente, o significado do princípio da prevenção é pacifico. Sob a sua alçada permite-se que as devidas acções para proteger o ambiente sejam tomadas antes de se verificar o dano. Ou seja, porque reparar os danos após a ocorrência do facto danoso é, do ponto de vista ambiental, menos satisfatório e porque a actuação preventiva pode também ser economicamente preferível, o princípio da prevenção permite que certa e eminente actividade humana seja travada quando se tenha comprovado que a sua prossecução lesará de forma grave e irreversível certos bens ambientais[2].

Por seu turno, o princípio da precaução surgiu muito mais recentemente, já durante os anos 80. A nível internacional, o primeiro reconhecimento do princípio da precaução remonta à Carta Mundial da Natureza, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1982[3]. Ao contrário do princípio da prevenção, o princípio da precaução não foi expressamente consagrado na Constituição da República Portuguesa. No entanto, desde o Tratado de Maastricht que este princípio consta da letra do Tratado da Comunidade Europeia, no actual art. 174.º, n.º 2, em paridade com o princípio da prevenção e os demais princípios estruturantes da política ambiental da União.

Por esta via é indiscutível que o princípio da precaução é parte integrante do ordenamento jurídico português. Aliás, sua adopção a nível comunitário mais impõe ao legislador nacional a obrigação de o consagrar expressamente e de eliminar todos os obstáculos que sejam susceptíveis de pôr em causa a sua aplicação, sob pena de o Estado português vir a ser responsabilizado pelo incumprimento do Direito Comunitário[4], como, de resto, demonstra a exigente jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias em casos comparáveis.

À luz do Direito Comunitário, o princípio da precaução tem conhecido grandes desenvolvimentos e concretizações. No entanto, o seu conteúdo não está ainda cristalizado e discute-se actualmente qual a abordagem mais correcta a seguir para a sua aplicação.

O facto de os critérios de distinção entre prevenção e precaução não serem unívocos e de também não serem pacíficas as soluções a que este princípio conduz leva a que a sua autonomização seja por vezes criticada[5].

Com efeito, procurar definir o princípio da precaução de forma exaustiva é uma tarefa ingrata e, provavelmente, desnecessária, pois nem é da natureza de um princípio jurídico dar respostas claras e completas a todos os casos possíveis.

Ainda assim, é possível avançar elementos que ajudam à compreensão e à concretização do princípio da precaução.

Para tal, é comum citar-se a Declaração do Rio sobre Ambiente e Desenvolvimento:

“Quando houver perigo de dano grave ou irreversível, a falta de certeza científica absoluta não deverá ser utilizada como razão para se adiar a adopção de medidas eficazes em função dos custos para impedir a degradação do meio ambiente.”[6]

Reflectida nesta disposição está uma abordagem moderada ao princípio da precaução, como também é aquela adoptada pelas instituições europeias, por oposição a uma outra postura mais radical.

Esta abordagem forte ou radical do princípio da precaução postula que os sujeitos interessados na prossecução uma actividade deverão demonstrar a segurança da sua actuação, menosprezando os benefícios que dessa actividade poderiam advir, mesmo que superiores aos seus custos.

É uma construção propícia a críticas que parecem inultrapassáveis: mais ainda em matérias que lidam directamente com o meio ambiente, não parece concebível uma actividade que não comporte pelo menos um risco mínimo na sua realização. Daí que a prova do risco zero exigida por uma concepção imperiosa do princípio da precaução nunca seja possível.

Desta forma, a aplicação deste princípio nos termos expostos levaria à estagnação tecnológica, porque sempre seriam de recusar novas técnicas ou indústrias que não provassem ser isentas de riscos para o ambiente[7].

Daí que esta abordagem ao princípio da precaução seja pouco comum. Nomeadamente, a Comissão Europeia recusa a utilização deste princípio para a “procura de um nível zero de risco que, na realidade, apenas raramente se consegue alcançar”[8]. Por outro lado, como decidiu o Tribunal de Primeira Instância no acórdão Pfizer, “não pode existir um nível de «risco zero», na medida em que não pode ser cientificamente provada a ausência total do menor risco actual ou futuro relacionado com a [actividade]”[9].

Preferível, então, será uma concepção do princípio da precaução como aquela que consta da já referida Declaração do Rio e que é também a propugnada pelas instituições europeias.

Em primeiro lugar, há que ter em conta que a Comissão Europeia concebe o princípio da precaução como uma ferramenta não de avaliação de riscos, mas de gestão de riscos. Isto é, o princípio da precaução releva no momento em que, através de uma decisão política, se estabelecem os níveis de riscos aceitáveis e não quando, do ponto de vista técnico, se procuram identificar os riscos inerentes a certa actividade.

Assim, um dos mais importantes aspectos do princípio da precaução tal como ele é entendido pelo Direito Comunitário é a preponderância que ele atribui à protecção ambiental face aos interesses económicos. Desta forma decidiu o Tribunal de Primeira Instância, no caso Artegodan: “o princípio da precaução pode ser definido como um princípio geral do direito comunitário que impõe às autoridades competentes que tomem medidas adequadas para evitar certos riscos potenciais para a saúde pública, a segurança e o ambiente, dando prevalência aos imperativos ligados à protecção destes interesses sobre os interesses económicos.[10]

Mas é de notar que nem sempre é possível uma preponderância da protecção ambiental (nem da protecção da saúde pública, nem da segurança) em termos assim tão simplistas.

Aliás, um outro aspecto essencial do princípio da precaução tal como o Direito Comunitário o entende – e que distingue esta concepção daquela abordagem radical que parece ser de recusar – é a ponderação custo/benefício sobre a actividade em causa.

Uma ponderação custos/benefícios sempre limita muito do radicalismo que o princípio da precaução poderia implicar, porque a sua aplicação ponderará cálculos económicos que pressupõem uma mínima previsibilidade dos efeitos da actividade em questão e do impacto que esses efeitos terão no ambiente.

Mas se esta forma a análise custo/benefício ajuda à limitação do princípio da precaução e dos valores ambientais que ele visa proteger face aos interesses económicos, também não pode ser entendida de tal forma que esvazie o princípio do seu conteúdo.

Nesta base, o Tribunal de Primeira Instância alinhou o princípio da precaução com o princípio da proporcionalidade para criar um critério segundo o qual uma medida tomada ao abrigo da precaução é desproporcionada se, “no quadro de uma avaliação custos/benefícios, [os] inconvenientes são excessivos em relação às vantagens que resultariam de uma ausência de acção”[11].

Indo mais além, tanto o Tribunal de Primeira Instância como também a Comissão afirmam que, apesar de uma ponderação económica de custos/benefícios dever ser realizada quando for “adequado e viável”[12], a obrigação de considerar os custos e benefícios da actividade deve ter “em conta outros métodos de análise, como os que se referem à eficácia e ao impacto socio-económico das opções possíveis”, assim como “considerações não económicas”[13].

Doutra forma não poderia ser, já que o princípio da precaução actua fazendo prevalecer os interesses ambientais em detrimento de preocupações puramente económicas.

Consequentemente, se o princípio da precaução tem o seu cerne na protecção do ambiente, mas, por outro lado, não pode simplesmente recusar que os benefícios que novas técnicas ou indústrias podem trazer, como não pode também ignorar que haverá sempre um risco mínimo e incontornável inerente aos avanços da tecnologia, o conhecimento científico assume um papel central nos fundamentos da sua aplicação.

Neste sentido, o Tribunal de Primeira Instância condena qualquer tentativa de regulação e gestão de riscos baseada numa “abordagem puramente hipotética do risco, assente em meras suposições ainda não cientificamente verificadas”[14]. Antes a precaução se baseará num risco que “sem que a sua existência e o seu alcance tenham sido demonstrados «plenamente» por dados científicos concludentes, [esteja] no entanto suficientemente documentado com base nos dados científicos existentes no momento da tomada desta medida”[15].

O conhecimento científico serve assim de fiel da balança da precaução, equilibrando as tensões presentes, já que a aplicação do princípio não pode funcionar quando exista apenas um risco meramente hipotético, mas também não pode esperar até que o risco seja dado como uma certeza.

No entanto, é impossível determinar um nível de informação científica que legitima a invocação do princípio da precaução. Daí que também a jurisprudência europeia oscile, ora aplicando o princípio da precaução com maior rigidez, ora fazendo-o de forma mais permissiva.

Se da jurisprudência Pfizer Decorre que não é exigível a certeza quanto à inexistência de riscos, já no acórdão Waddenzee o Tribunal de Justiça declarou que “As autoridades nacionais competentes, tendo em conta a avaliação adequada dos efeitos do plano ou do projecto no sítio em causa à luz dos objectivos de conservação deste último, só autorizam esse plano ou esse projecto desde que tenham a certeza de que o mesmo é desprovido de efeitos prejudiciais para o referido sítio. Assim acontece quando não subsiste nenhuma dúvida razoável do ponto de vista científico quanto à inexistência de tais efeitos.”[16].

Pretendendo cristalizar os fundamentos de acção do princípio, a Comissão refere na sua comunicação que este “Abrange circunstâncias específicas em que os resultados científicos sejam insuficientes, inconclusivos ou incertos mas haja indicações, na sequência de uma avaliação científica objectiva preliminar, que existem motivos razoáveis para suspeitar que os efeitos potencialmente perigosos para o ambiente, a saúde das pessoas e dos animais ou a protecção vegetal podem ser incompatíveis com o elevado nível de protecção escolhido.”[17]

Nessa mesma declaração veio a Comissão Europeia tomar posição quanto ao ónus da prova da avaliação dos riscos, consequência também controversa da aplicação do princípio da precaução.

Refere então a Comissão que é já uma aplicação do princípio da precaução a autorização prévia a certas actividades ou produtos estão sujeitos. “É particularmente o caso para substâncias consideradas perigosas a priori ou que se tornam potencialmente perigosas a um certo nível de absorção. Neste caso, o legislador, por precaução, inverteu claramente o ónus da prova determinando que estas substâncias são consideradas perigosas até prova em contrário. Compete, por conseguinte, às empresas a realização do trabalho científico necessário para a avaliação de riscos. Enquanto o nível de risco para a saúde ou para o ambiente não possa ser avaliado com suficiente certeza, o legislador não tem fundamento jurídico para autorizar a utilização da substância, excepto em condições excepcionais para a realização de ensaios.”[18]

Por outro lado, já assim não será necessariamente quando aquela autorização prévia não exista. Estabelece a Comissão que, agora, “pode competir ao utilizador, indivíduo, associação de consumidores ou de cidadãos, ou ao poder público a demonstração da natureza de um perigo e o nível de risco de um produto ou de um processo”[19]. Mas esta consideração não prejudica que “Uma acção tomada ao abrigo do princípio da precaução pode comportar em certos casos uma cláusula invertendo o ónus da prova sobre o produtor, o fabricante ou o importador; mas essa obrigação não pode ser sistematicamente vista como um princípio geral. Esta possibilidade deveria ser examinada caso a caso, quando uma medida é adoptada ao abrigo da precaução na pendência de dados científicos suplementares, para dar aos profissionais com interesses económicos na produção e/ou na comercialização do processo ou do produto em questão a possibilidade de financiar a investigação científica necessária, numa base voluntária”[20].

Tudo visto, poderemos concluir que o princípio da precaução é um princípio autónomo do princípio da prevenção e que tem a sua utilidade e o seu espaço de intervenção, quando entendido de forma moderada e racional.

A precaução distingue-se assim da prevenção por permitir salvaguarda dos interesses ambientais quando, inerente a certa actividade ou industria, exista um risco que, de acordo com os conhecimentos científicos disponíveis, não possa ser considerado como certo. Quer dizer que o princípio da precaução não se basta, como o princípio da intervenção, com uma actuação antes da verificação do dano, mas antes obriga a que as devidas medidas sejam tomadas quando os riscos em causa deixem de se poder considerar puramente hipotéticos e possam ser tidos como suficientemente avaliados com base em dados científicos, ainda que a sua existência e alcance não tenham sido plenamente demonstrados.

Essencial ao princípio da precaução é que seja dada prevalência aos interesses ambientais (como também à saúde pública e à segurança) sobre as pretensões puramente económicas, numa raciocínio de proporcionalidade que, então, pesará os custos e os benefícios económicos, sociais e políticos das medidas tomadas para a eliminação dos riscos ambientais.

Raciocínio esse que sempre terá em conta que sobre todas as inovações tecnológicas impende um risco mínimo que se terá de aceitar.

Desta forma, a aplicação do princípio da precaução pode levar à inversão do ónus da prova quanto aos riscos das actividade ou indústria, cabendo ao interessado demonstrar que essa tecnologia não acarreta mais do que um risco tolerável. Assim acontecerá nos casos em que essa actividade esteja sujeita a autorização sendo que, nos demais, essa inversão do ónus da prova é possível, mas deverá ser ponderada face às circunstâncias do casos concerto, em vez de determinada em termos gerais.



[1] Cfr.Carla Amado Gomes, A Prevenção à Prova no Direito do Ambiente – em especial, os actos autorizativos ambientais, Coimbra Editora, Coimbra, 2002, p. 30

[2] Carla Amado Gomes, A Prevenção…, p. 22

[3] Comunicação da Comissão Relativa ao Princípio da Precaução, p. 8

[4] Cfr. Carla Amado Gomes, A Prevenção…, p. 31

[5] Cfr. Vasco Pereira da Silva, Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente, Livraria Almedina, Coimbra, 2002, p. 69

[6] Declaração do Rio sobre Ambiente e Desenvolvimento (1992), Princípio 15, disponível em: http://www.un.org/documents/ga/conf151/aconf15126-1annex1.htm

[7] . Vasco Pereira da Silva, Verde…, pp. 70 e 71

[8] Comunicação da Comissão Relativa ao Princípio da Precaução, p. 6

[9] Caso T-13/99, §145

[10] Caso T-74/00, §184

[11] Ac. Pfizer, Caso T-13/99, §413

[12] Comunicação da Comissão Relativa ao Princípio da Precaução, p. 6

[13] Comunicação da Comissão Relativa ao Princípio da Precaução, p. 17

[14] Ac. Pfizer, Caso T-13/99, §143

[15] Ac. Pfizer, Caso T-13/99, §144

[16] Caso C-127/02

[17] Comunicação da Comissão Relativa ao Princípio da Precaução, p. 7

[18] Comunicação da Comissão Relativa ao Princípio da Precaução, pp. 19 e 20

[19] Comunicação da Comissão Relativa ao Princípio da Precaução, p. 20

[20] Comunicação da Comissão Relativa ao Princípio da Precaução, p. 20

De entre os vários princípios basilares da política ambiental há um – o princípio da precaução – que tem suscitado alguma polémica, sobretudo quando contraposto a um outro – o princípio da prevenção.

Este último, o princípio da prevenção, tem uma origem muito anterior ao princípio da precaução, sendo que já em 1958 fora adoptado pela Convenção sobre Alto-mar, assinada em Geneva[1], e tem hoje consagração expressa no art. 66.º, n.º 2, al. a), da Constituição da República Portuguesa.

Assim, actualmente, o significado do princípio da prevenção é pacifico. Sob a sua alçada permite-se que as devidas acções para proteger o ambiente sejam tomadas antes de se verificar o dano. Ou seja, porque reparar os danos após a ocorrência do facto danoso é, do ponto de vista ambiental, menos satisfatório e porque a actuação preventiva pode também ser economicamente preferível, o princípio da prevenção permite que certa e eminente actividade humana seja travada quando se tenha comprovado que a sua prossecução lesará de forma grave e irreversível certos bens ambientais[2].

Por seu turno, o princípio da precaução surgiu muito mais recentemente, já durante os anos 80. A nível internacional, o primeiro reconhecimento do princípio da precaução remonta à Carta Mundial da Natureza, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1982[3]. Ao contrário do princípio da prevenção, o princípio da precaução não foi expressamente consagrado na Constituição da República Portuguesa. No entanto, desde o Tratado de Maastricht que este princípio consta da letra do Tratado da Comunidade Europeia, no actual art. 174.º, n.º 2, em paridade com o princípio da prevenção e os demais princípios estruturantes da política ambiental da União.

Por esta via é indiscutível que o princípio da precaução é parte integrante do ordenamento jurídico português. Aliás, sua adopção a nível comunitário mais impõe ao legislador nacional a obrigação de o consagrar expressamente e de eliminar todos os obstáculos que sejam susceptíveis de pôr em causa a sua aplicação, sob pena de o Estado português vir a ser responsabilizado pelo incumprimento do Direito Comunitário[4], como, de resto, demonstra a exigente jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias em casos comparáveis.

À luz do Direito Comunitário, o princípio da precaução tem conhecido grandes desenvolvimentos e concretizações. No entanto, o seu conteúdo não está ainda cristalizado e discute-se actualmente qual a abordagem mais correcta a seguir para a sua aplicação.

O facto de os critérios de distinção entre prevenção e precaução não serem unívocos e de também não serem pacíficas as soluções a que este princípio conduz leva a que a sua autonomização seja por vezes criticada[5].

Com efeito, procurar definir o princípio da precaução de forma exaustiva é uma tarefa ingrata e, provavelmente, desnecessária, pois nem é da natureza de um princípio jurídico dar respostas claras e completas a todos os casos possíveis.

Ainda assim, é possível avançar elementos que ajudam à compreensão e à concretização do princípio da precaução.

Para tal, é comum citar-se a Declaração do Rio sobre Ambiente e Desenvolvimento:

“Quando houver perigo de dano grave ou irreversível, a falta de certeza científica absoluta não deverá ser utilizada como razão para se adiar a adopção de medidas eficazes em função dos custos para impedir a degradação do meio ambiente.”[6]

Reflectida nesta disposição está uma abordagem moderada ao princípio da precaução, como também é aquela adoptada pelas instituições europeias, por oposição a uma outra postura mais radical.

Esta abordagem forte ou radical do princípio da precaução postula que os sujeitos interessados na prossecução uma actividade deverão demonstrar a segurança da sua actuação, menosprezando os benefícios que dessa actividade poderiam advir, mesmo que superiores aos seus custos.

É uma construção propícia a críticas que parecem inultrapassáveis: mais ainda em matérias que lidam directamente com o meio ambiente, não parece concebível uma actividade que não comporte pelo menos um risco mínimo na sua realização. Daí que a prova do risco zero exigida por uma concepção imperiosa do princípio da precaução nunca seja possível.

Desta forma, a aplicação deste princípio nos termos expostos levaria à estagnação tecnológica, porque sempre seriam de recusar novas técnicas ou indústrias que não provassem ser isentas de riscos para o ambiente[7].

Daí que esta abordagem ao princípio da precaução seja pouco comum. Nomeadamente, a Comissão Europeia recusa a utilização deste princípio para a “procura de um nível zero de risco que, na realidade, apenas raramente se consegue alcançar”[8]. Por outro lado, como decidiu o Tribunal de Primeira Instância no acórdão Pfizer, “não pode existir um nível de «risco zero», na medida em que não pode ser cientificamente provada a ausência total do menor risco actual ou futuro relacionado com a [actividade]”[9].

Preferível, então, será uma concepção do princípio da precaução como aquela que consta da já referida Declaração do Rio e que é também a propugnada pelas instituições europeias.

Em primeiro lugar, há que ter em conta que a Comissão Europeia concebe o princípio da precaução como uma ferramenta não de avaliação de riscos, mas de gestão de riscos. Isto é, o princípio da precaução releva no momento em que, através de uma decisão política, se estabelecem os níveis de riscos aceitáveis e não quando, do ponto de vista técnico, se procuram identificar os riscos inerentes a certa actividade.

Assim, um dos mais importantes aspectos do princípio da precaução tal como ele é entendido pelo Direito Comunitário é a preponderância que ele atribui à protecção ambiental face aos interesses económicos. Desta forma decidiu o Tribunal de Primeira Instância, no caso Artegodan: “o princípio da precaução pode ser definido como um princípio geral do direito comunitário que impõe às autoridades competentes que tomem medidas adequadas para evitar certos riscos potenciais para a saúde pública, a segurança e o ambiente, dando prevalência aos imperativos ligados à protecção destes interesses sobre os interesses económicos.[10]

Mas é de notar que nem sempre é possível uma preponderância da protecção ambiental (nem da protecção da saúde pública, nem da segurança) em termos assim tão simplistas.

Aliás, um outro aspecto essencial do princípio da precaução tal como o Direito Comunitário o entende – e que distingue esta concepção daquela abordagem radical que parece ser de recusar – é a ponderação custo/benefício sobre a actividade em causa.

Uma ponderação custos/benefícios sempre limita muito do radicalismo que o princípio da precaução poderia implicar, porque a sua aplicação ponderará cálculos económicos que pressupõem uma mínima previsibilidade dos efeitos da actividade em questão e do impacto que esses efeitos terão no ambiente.

Mas se esta forma a análise custo/benefício ajuda à limitação do princípio da precaução e dos valores ambientais que ele visa proteger face aos interesses económicos, também não pode ser entendida de tal forma que esvazie o princípio do seu conteúdo.

Nesta base, o Tribunal de Primeira Instância alinhou o princípio da precaução com o princípio da proporcionalidade para criar um critério segundo o qual uma medida tomada ao abrigo da precaução é desproporcionada se, “no quadro de uma avaliação custos/benefícios, [os] inconvenientes são excessivos em relação às vantagens que resultariam de uma ausência de acção”[11].

Indo mais além, tanto o Tribunal de Primeira Instância como também a Comissão afirmam que, apesar de uma ponderação económica de custos/benefícios dever ser realizada quando for “adequado e viável”[12], a obrigação de considerar os custos e benefícios da actividade deve ter “em conta outros métodos de análise, como os que se referem à eficácia e ao impacto socio-económico das opções possíveis”, assim como “considerações não económicas”[13].

Doutra forma não poderia ser, já que o princípio da precaução actua fazendo prevalecer os interesses ambientais em detrimento de preocupações puramente económicas.

Consequentemente, se o princípio da precaução tem o seu cerne na protecção do ambiente, mas, por outro lado, não pode simplesmente recusar que os benefícios que novas técnicas ou indústrias podem trazer, como não pode também ignorar que haverá sempre um risco mínimo e incontornável inerente aos avanços da tecnologia, o conhecimento científico assume um papel central nos fundamentos da sua aplicação.

Neste sentido, o Tribunal de Primeira Instância condena qualquer tentativa de regulação e gestão de riscos baseada numa “abordagem puramente hipotética do risco, assente em meras suposições ainda não cientificamente verificadas”[14]. Antes a precaução se baseará num risco que “sem que a sua existência e o seu alcance tenham sido demonstrados «plenamente» por dados científicos concludentes, [esteja] no entanto suficientemente documentado com base nos dados científicos existentes no momento da tomada desta medida”[15].

O conhecimento científico serve assim de fiel da balança da precaução, equilibrando as tensões presentes, já que a aplicação do princípio não pode funcionar quando exista apenas um risco meramente hipotético, mas também não pode esperar até que o risco seja dado como uma certeza.

No entanto, é impossível determinar um nível de informação científica que legitima a invocação do princípio da precaução. Daí que também a jurisprudência europeia oscile, ora aplicando o princípio da precaução com maior rigidez, ora fazendo-o de forma mais permissiva.

Se da jurisprudência Pfizer Decorre que não é exigível a certeza quanto à inexistência de riscos, já no acórdão Waddenzee o Tribunal de Justiça declarou que “As autoridades nacionais competentes, tendo em conta a avaliação adequada dos efeitos do plano ou do projecto no sítio em causa à luz dos objectivos de conservação deste último, só autorizam esse plano ou esse projecto desde que tenham a certeza de que o mesmo é desprovido de efeitos prejudiciais para o referido sítio. Assim acontece quando não subsiste nenhuma dúvida razoável do ponto de vista científico quanto à inexistência de tais efeitos.”[16].

Pretendendo cristalizar os fundamentos de acção do princípio, a Comissão refere na sua comunicação que este “Abrange circunstâncias específicas em que os resultados científicos sejam insuficientes, inconclusivos ou incertos mas haja indicações, na sequência de uma avaliação científica objectiva preliminar, que existem motivos razoáveis para suspeitar que os efeitos potencialmente perigosos para o ambiente, a saúde das pessoas e dos animais ou a protecção vegetal podem ser incompatíveis com o elevado nível de protecção escolhido.”[17]

Nessa mesma declaração veio a Comissão Europeia tomar posição quanto ao ónus da prova da avaliação dos riscos, consequência também controversa da aplicação do princípio da precaução.

Refere então a Comissão que é já uma aplicação do princípio da precaução a autorização prévia a certas actividades ou produtos estão sujeitos. “É particularmente o caso para substâncias consideradas perigosas a priori ou que se tornam potencialmente perigosas a um certo nível de absorção. Neste caso, o legislador, por precaução, inverteu claramente o ónus da prova determinando que estas substâncias são consideradas perigosas até prova em contrário. Compete, por conseguinte, às empresas a realização do trabalho científico necessário para a avaliação de riscos. Enquanto o nível de risco para a saúde ou para o ambiente não possa ser avaliado com suficiente certeza, o legislador não tem fundamento jurídico para autorizar a utilização da substância, excepto em condições excepcionais para a realização de ensaios.”[18]

Por outro lado, já assim não será necessariamente quando aquela autorização prévia não exista. Estabelece a Comissão que, agora, “pode competir ao utilizador, indivíduo, associação de consumidores ou de cidadãos, ou ao poder público a demonstração da natureza de um perigo e o nível de risco de um produto ou de um processo”[19]. Mas esta consideração não prejudica que “Uma acção tomada ao abrigo do princípio da precaução pode comportar em certos casos uma cláusula invertendo o ónus da prova sobre o produtor, o fabricante ou o importador; mas essa obrigação não pode ser sistematicamente vista como um princípio geral. Esta possibilidade deveria ser examinada caso a caso, quando uma medida é adoptada ao abrigo da precaução na pendência de dados científicos suplementares, para dar aos profissionais com interesses económicos na produção e/ou na comercialização do processo ou do produto em questão a possibilidade de financiar a investigação científica necessária, numa base voluntária”[20].

Tudo visto, poderemos concluir que o princípio da precaução é um princípio autónomo do princípio da prevenção e que tem a sua utilidade e o seu espaço de intervenção, quando entendido de forma moderada e racional.

A precaução distingue-se assim da prevenção por permitir salvaguarda dos interesses ambientais quando, inerente a certa actividade ou industria, exista um risco que, de acordo com os conhecimentos científicos disponíveis, não possa ser considerado como certo. Quer dizer que o princípio da precaução não se basta, como o princípio da intervenção, com uma actuação antes da verificação do dano, mas antes obriga a que as devidas medidas sejam tomadas quando os riscos em causa deixem de se poder considerar puramente hipotéticos e possam ser tidos como suficientemente avaliados com base em dados científicos, ainda que a sua existência e alcance não tenham sido plenamente demonstrados.

Essencial ao princípio da precaução é que seja dada prevalência aos interesses ambientais (como também à saúde pública e à segurança) sobre as pretensões puramente económicas, numa raciocínio de proporcionalidade que, então, pesará os custos e os benefícios económicos, sociais e políticos das medidas tomadas para a eliminação dos riscos ambientais.

Raciocínio esse que sempre terá em conta que sobre todas as inovações tecnológicas impende um risco mínimo que se terá de aceitar.

Desta forma, a aplicação do princípio da precaução pode levar à inversão do ónus da prova quanto aos riscos das actividade ou indústria, cabendo ao interessado demonstrar que essa tecnologia não acarreta mais do que um risco tolerável. Assim acontecerá nos casos em que essa actividade esteja sujeita a autorização sendo que, nos demais, essa inversão do ónus da prova é possível, mas deverá ser ponderada face às circunstâncias do casos concerto, em vez de determinada em termos gerais.



[1] Cfr. CARLA AMADO GOMES, A Prevenção à Prova no Direito do Ambiente – em especial, os actos autorizativos ambientais, Coimbra Editora, Coimbra, 2002, p. 30

[2] CARLA AMADO GOMES, A Prevenção…, p. 22

[3] Comunicação da Comissão Relativa ao Princípio da Precaução, p. 8

[4] Cfr. CARLA AMADO GOMES, A Prevenção…, p. 31

[5] Cfr. VASCO PEREIRA DA SILVA, Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente, Livraria Almedina, Coimbra, 2002, p. 69

[6] Declaração do Rio sobre Ambiente e Desenvolvimento (1992), Princípio 15, disponível em: http://www.un.org/documents/ga/conf151/aconf15126-1annex1.htm

[7] . VASCO PEREIRA DA SILVA, Verde…, pp. 70 e 71

[8] Comunicação da Comissão Relativa ao Princípio da Precaução, p. 6

[9] Caso T-13/99, §145

[10] Caso T-74/00, §184

[11] Ac. Pfizer, Caso T-13/99, §413

[12] Comunicação da Comissão Relativa ao Princípio da Precaução, p. 6

[13] Comunicação da Comissão Relativa ao Princípio da Precaução, p. 17

[14] Ac. Pfizer, Caso T-13/99, §143

[15] Ac. Pfizer, Caso T-13/99, §144

[16] Caso C-127/02

[17] Comunicação da Comissão Relativa ao Princípio da Precaução, p. 7

[18] Comunicação da Comissão Relativa ao Princípio da Precaução, pp. 19 e 20

[19] Comunicação da Comissão Relativa ao Princípio da Precaução, p. 20

[20] Comunicação da Comissão Relativa ao Princípio da Precaução, p. 20