domingo, 24 de maio de 2009

Comentáro ao Acórdão de 19/10/2004 do STJ sobre a prática desportiva do tiro aos pombos

No Acórdão de 19/10/1004 está em causa está uma acção movida pela Sociedade A, uma associação zoófila, contra B e C, organizadores de um concurso de tiro aos pombos, por violação da Lei 92/95, de 12 de Setembro, que visa a protecção animal “contra violências cruéis ou gratuitas, para as quais não exista tradição cultural bastante”. Este Acórdão é proferido na sequência da decisão do Tribunal da Relação de Guimarães (Ac. De 29/10/2003), no quel se conclui pela ilicitude da práctica desportiva do tiro aos pombos em voo, com base numa interpretação actualista da Lei em análise.
Em resposta ao recurso interposto, vem o STJ contrariar a anterior decisão e decidir pela licitude desta prática, por não se enquadrar na previsão a que se reporta o proémio da Lei 92/95 nem tão pouco no seu art. 1º/1/3 e).
A questão é que o Acórdão se baseia no pressuposto de que os animais são coisas, destituídos de personalidade jurídica, pelo que não se pode invocar a seu favor direitos como o direito à vida ou à integridade física. Contudo, a Lei 92/95, de 12/9, tem por objectivo incutir no Homem o dever de proteger os animais contra agressões gratuitas, cruéis ou desumanas, entendendo que o conjunto de conceitos indeterminados a que se reporta o artigo 1º, nº1 (‘violência injustificada’, ‘morte’, ‘lesão grave’, ‘sofrimento cruel e prolongado’) significa acto gratuito de força ou brutalidade causando dor física intensa ou eliminação vital dos animais, sem qualquer justificação e utilidade para o homem.
Analisemos, então, um conjunto de argumentos apresentados pelos Acórdãos em análise para que possamos ou não enquadrá-los na previsão da Lei 92/95:
 Primeiramente, o STJ começa por invocar que a morte dos pombos é rápida e não lhes provoca sofrimento cruel e prolongado. Contudo, não se revela no Acórdão o que acontece com os pombos que não são atingidos, nem o sofrimento e o tempo de vida daqueles que, não sendo atingidos de forma certeira, padecem em agonia. Acrescente-se que as actividades lúdicas não justificam a morte dos animais a não ser nos casos expressamente enunciados no nº3 do Art.1º, não podendo assim a questão cultural relevar enquanto critério de necessidade por não ter sido considerada o tiro aos pombos uma das excepções a apontar pelo legislador. Além do mais, esta continuaria a ser uma actividade perfeitamente viável mesmo quando substituídos os pombos por pratos, por exemplo. Resposta negativa conduziria ao mero prazer de matar como objectivo principal da actividade.
 Quanto ao argumento da prática do tiro aos pombos constituir uma tradição portuguesa, deve, desde já, distinguir-se a prática de tiro com a prática do tiro aos pombos, pois esta, ao contrário da primeira (actividade olímpica), é bastante restrita e invulgar. Esta actividade desportiva não faz parte da tradição portuguesa, nem implica qualquer valor cultural, não havendo deste modo qualquer fundamento legal para a excepção da sua permissão. Tal como afirma o Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia, não existe em Portugal qualquer costume contra-legem, derrogatório da proibição geral constante da Lei n.º 92/95, “ por não se verificarem os seus elementos constitutivos, até porque sempre houve a preocupação de acatar as várias decisões jurisprudenciais que impediram provisoriamente a sua prática, coisa que seria impensável se houvesse, verdadeiramente, uma prática costumeira, que forçosamente se sobreporia a uma aplicação do direito legal”.
 Quando se invoca o facto de o animal em questão não se encontrar em vias de extinção, sendo a prática de tiro favorável à promoção do crescimento de certos tipos de pombo, deve sublinhar-se a afirmação de André Dias Pereira quando refere que esta lei não visa proteger os animais em vias de extinção (uma vez que para este efeito existem leis específicas) mas sim todos os animais enquanto merecedores do respeito e da protecção dos seres humanos.
 Acresce ainda que, apenas as actividades excepcionadas por via do nº3 do Art.1º da Lei 92/95 são justificadas pela tradição cultural portuguesa aos olhos do legislador. Aliás, deve ser essa a única interpretação possível se atentarmos ao disposto no art. 1º/3 do CC (“Na fixação do sentido e alcance da lei, o interprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”). Assim sendo, o art 1º da Lei 92/95 consagra uma cláusula geral proibitiva, tendo como únicas excepções as elencadas no seu nº3, o que nos conduz à proibição de analogia das mesmas.
 Finalmente o argumento da Federação portuguesa de tiro ser desde 18 de Março de 1994 uma pessoa colectiva de utilidade pública, também não poderá proceder, pois este facto não quer dizer que se lhe deixe de aplicar lei posterior (Lei 92/95), que revoga parcialmente o despacho de 4 de Abril de 1994 quanto ao tiro a alvos vivos .

Por todo o exposto, deve concluir-se que os argumentos elencados pelo STJ quando proferiu este Acórdão não deveriam proceder por contrários à Lei 92/95. Deve-se, como tal, considerar ilegal a actividade de tiro aos pombos. À face da Lei, teria sido a decisão mais correcta. Não obstante, parece impor-se uma maior clarificação da Lei neste sentido, por forma a cessar quaisquer dúvidas ou incertezas jurídicas.

Cláudia Cordeiro