domingo, 24 de maio de 2009

10.ª Tarefa - Avaliação de impacto ambiental estratégica conforme com o Direito Comunitário?

1. Enunciado do problema

O artigo 19º, nº 1, do DL 69/2000 de 3 de Maio (doravante DL), estabeleceu um acto de deferimento tácito. Na opinião do Prof. Vasco Pereira da Silva, este deferimento tácito foi uma “má solução” e constitui um “contrasenso” [Vasco Pereira da Silva, Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente, Almedina, Coimbra, 2002, p 166].
A admissão de um acto tácito é questionável quanto à sua conformidade com a Directiva 85/337/CEE (doravante Directiva), tanto mais que o Tribunal de Justiça já se pronunciou no sentido da incompatibilidade das autorizações tácitas com o Direito comunitário.
Por seu turno, o artigo 19º, nº 5, do DL veio estabelecer que, nos casos em que ocorre deferimento tácito, “a autoridade competente para o licenciamento ou autorização enuncia as razões de facto e de direito que justificam a decisão, tem em consideração o EIA apresentado pelo proponente e inclui, quando disponíveis, os restantes elementos referidos no artigo 17º, nº 1 do presente diploma”.
Esta última disposição já tem sido considerada como uma “escapatória” para evitar a incompatibilidade com o Direito comunitário. O art. 19º, nº 5, vem colmatar a inércia e o silêncio do ministro do ambiente com uma intervenção adicional da autoridade de AIA.


2. Uma má solução? – Parte I

Efectivamente, não faz muito sentido legislar no sentido de submeter determinados projectos a AIA e, depois, admitir que o procedimento respectivo inclua actos tácitos. Sobretudo estando em causa actos tão relevantes como a “declaração de impacte ambiental” (DIA) da competência ministro do ambiente. É, portanto difícil não concordar com a opinião expressa pelo Professor Vasco Pereira da Silva. O deferimento tácito afigura-se quase uma fraude ao princípio da avaliação prévia, ao princípio (constitucional) da prevenção.
Os actos tácitos não são um modo de suavizar a sobrecarga de quem tem competência para praticar actos administrativos (expressos ou tácitos). São, isso sim, um mecanismo de certeza jurídica para os particulares. O indeferimento tácito evita que o interessado espere indefinidamente e permite-lhe reagir, com os meios que o Direito Administrativo coloca ao seu dispor. O deferimento tácito evita ambas as coisas, isto é, a demora indefinida e a reacção contra o indeferimento tácito.

O complexo sistema de prazos estabelecido no DL que transforma o procedimento de AIA é tudo menos simples. Senão vejamos:
- antes de iniciar o procedimento de AIA, os interessados necessitam de tempo para obter o EIA indispensável. Sem ele, o procedimento não se inicia (12º, nº 1, do DL);
- apresentada a proposta completa, com o EIA e demais documentos, e caso a entidade licenciadora não seja também a autoridade de AIA, a lei estipula um prazo de 3 dias para o envio (12º, nº 2);
- a autoridade de AIA tem 10 dias para nomear a Comissão de Avaliação (no silêncio do artº 13º, nº 3, aplica-se o prazo supletivo do artº 71º do CPA - 10 dias);
- a comissão de avaliação tem 30 dias para se pronunciar sobre a conformidade técnica do EIA. Este prazo pode ser suspenso caso a comissão solicite informações adicionais ao proponente. Esta solicitação deve ser feita com prazo (a lei não diz qual) e interrompe o prazo de 30 dias (art. 13º, nº 5). A suspensão só ocorre uma vez (nº 6);
- se a comissão emitir declaração de conformidade, abre um novo prazo para enviar o EIA para as entidades públicas que deverão emitir parecer (no silêncio do art. 13, nº 9, o prazo é o supletivo de 10 dias);
- as entidades públicas terão 40 dias para emitir os respectivos pareceres (art. 13º, nº 10);
- em, paralelo, a autoridade de AIA tem 15 dias (a contar da declaração de conformidade emitida pela comissão de avaliação) para iniciar a publicitação do procedimento (14º, nº1);
- a consulta pública decorrerá num prazo de 20 a 50 dias (14º, nº 2). Durante o período de consulta, a autoridade poderá organizar audiências públicas, que deverá anunciar com antecedência mínima de 10 dias (art. 15º, nº 2). A autoridade de AIA tem ainda 30 dias para responder por escrito a pedidos que lhe tenham sido dirigidos, também por escrito, no decurso da consulta pública (art. 14º, nº 6). Em princípio, este prazo de trinta dias pode terminar depois de esgotado o prazo da consulta pública;
- terminada a consulta pública, a autoridade de AIA tem 15 dias para enviar à comissão de avaliação um relatório da consulta pública, com o conteúdo previsto no art. 14º, nº 5;
- recebido o relatório, a comissão de avaliação tem 25 dias para elaborar o seu parecer final que deve remeter à autoridade de AIA (art. 16º, nº 1);
- por seu turno, a autoridade de AIA deve remeter ao ministro do ambiente a proposta de DIA, “no decurso do prazo previsto no número anterior” (art. 16º, nº 2);
- o ministro tem então 15 dias, contados da recepção da proposta de DIA, consoante os projectos, para emitir a DIA (art. 18º, nº 1), a qual deve ser imediatamente notificada ao proponente e à autoridade licenciadora;
- notificada da DIA, abre-se novo prazo para a autoridade licenciadora praticar o acto de licenciamento.

O legislador, porém, foi manifestamente infeliz neste seu sistema de prazos. Por exemplo:
- a proposta de DIA tem que ser elaborada antes de ter terminado o prazo para o parecer final da comissão de avaliação;
- os números 3 e 4 do art. 19º dispõem que: para encurtar o prazo de 120 ou 140 dias para “apenas 80”, é necessário obter despacho favorável de dois ministros;
- mas veja-se bem: pede-se uma decisão expressa de dois ministros para encurtar o prazo de deferimento tácito de um só!

A primeira constatação é a da complexidade do procedimento de AIA. Essa é a sua principal infelicidade. Tudo correndo bem, sem atrasos, nem suspensões, contando com as consultas em 40 dias (entidades públicas e consulta pública em simultâneo) o processo poderá demorar 113 dias até estar “instruído” para a decisão de licenciamento. Os prazos possíveis para deferimento tácito não são muito superiores. Há que creditar ao legislador alguma preocupação de celeridade. Sem o recurso ao deferimento tácito, a situação seria bem pior e os proponentes estariam praticamente indefesos. A alternativa do indeferimento tácito seria pior: em vez de acelerar, voltar-se-ia atrás. Na prática, como se sabe, os proponentes tenderiam a esperar mais algum tempo…
O deferimento tácito não se afigura uma má solução, em si mesma. O princípio constitucional da prevenção não pode ser um princípio paralizante. O Prof. Vasco Pereira da Silva tem razão quando diz que é um contrasenso impor a AIA e depois “emitir” uma DIA favorável por acto tácito. Nestas matérias, um acto tácito é quase sempre uma má solução. A verdade, porém, é que não foi o legislador quem escolheu essa solução. A melhor solução é cumprir os prazos e foi essa que o legislador escolheu.


3. Uma má solução? – Parte II

Ao atribuir a competência para a DIA ao ministro do ambiente, o legislador quis provavelmente marcar a importância da AIA e do princípio da prevenção. Em todo o caso, não pode deixar de causar estranheza um procedimento em que um acto pressuposto (a DIA) é ministerial e o acto final (licenciamento) é de uma autoridade com posição hierarquicamente inferior. É certo que a DIA é o acto final (decisório) do procedimento de AIA, este, por seu turno, é um “enxerto” no processo de licenciamento e autorização. O acto-DIA é acto-pressuposto do acto de licenciamento. Podemos, como ensina o Prof. Vasco Pereira da Silva, dar como superada a dicotomia vinculativo/não vinculativo. Sabemos que o carácter vinculativo de um acto não depende de ser expresso ou tácito. Se, nos termos da lei, se forma um acto tácito, ele não será menos vinculativo que o correspondente acto expresso. Sendo acto-pressuposto e vinculativo, a DIA não pode ser alterada ou revertida pela entidade licenciadora. O normal é a entidade licenciadora assumir o DIA nos termos que o acto se formou. Porém, o que se encontra na letra do artigo 19º, nº 5, é diferente. Aparentemente, esta disposição atribui à entidade licenciadora a competência para suprir a falta de um acto expresso de DIA. Esta leitura afigura-se-nos absurda. Se o acto tácito se formou, nada há para suprir. Recordando a marcha do procedimento, vemos que a DIA resulta de uma proposta que a autoridade de AIA deve remeter ao ministro do ambiente (art. 16º, nº 2). Se entretanto termina o prazo e se forma o acto tácito, não estamos perante um acto vazio, nem perante um acto impossível. O acto tácito tem conteúdo: a proposta de DIA tacitamente aprovada. Em rigor, se se chegou à formulação da proposta de DIA prevista, a entidade licenciadora tem o caminho facilitado: está vinculada a assumi-la do mesmo modo como teria que assumir um acto expresso do ministro.

Menos linear é o caso de, por atraso no procedimento, se ter esgotado o prazo de deferimento tácito sem se ter chegado a formular a proposta de DIA. Nesta hipótese, o teor do artigo 19º, nº 5, revela-se uma má solução em duas vertentes. Em primeiro lugar pede-se a uma autoridade que proceda à exegese necessária para, a partir dos elementos que constam do processo (no mínimo, o EIA e demais documentos entregues pelo proponente) dê forma a uma DIA que não chegou sequer a ser proposta. Em segundo lugar, há uma troca de identidades: quem vai fazer esse trabalho é a entidade licenciadora e não a entidade de AIA.

Pelos dois motivos, é manifestamente uma má solução.

Deveria o legislador ter escolhido outra? Talvez. Mas no equilíbrio dos interesses em causa, o problema da solução não está na norma. O artigo 19º, nº 2, não é procedimento regra, mas solução de recurso para a situação de excepção. É uma má solução que só é detonada pelo incumprimento de prazos.


4. A jurisprudência comunitária

Debalde se procurará na Directiva qualquer menção a actos tácitos. A sua inadmissibilidade em matéria de decisões de autorização é uma construção jurisprudencial do Tribunal de Justiça (doravante TJ) a partir dos princípios e regras das várias Directivas que impõem avaliações prévias. A Directiva 85/337 evidencia uma preocupação enfática na obtenção, publicitação e escrutínio técnico e público dos detalhes dos projectos. São esses afinal, os objectivos das AIA. Compreende-se que tudo o que seja omitir a submissão dos projectos a uma verdadeira avaliação é uma violação da Directiva. Na perspectiva do TJ, só existe verdadeira avaliação com actos concretos, caso a caso.

No Acórdão Comissão vs. Bélgica [Caso c-230/00, http://eur-lex.europa.eu ], o TJ pronunciou-se pela inconformidade da legislação Belga que, em matéria de autorização, previa um indeferimento tácito em primeira instância, e um deferimento tácito em segunda instância (parágrafo 5 do acórdão). Segundo o TJ, “Resulta desta jurisprudência que uma autorização tácita não pode ser compatível com as exigências das directivas visadas pela presente acção, uma vez que estas prevêem quer, no que respeita às Directivas 75/442, 76/464, 80/68 e 84/360, mecanismos de autorizações prévias quer, no que respeita à Directiva 85/337, processos de avaliação que precedem a concessão de uma autorização. As autoridades nacionais são, por conseguinte, obrigadas, nos termos de cada uma destas directivas, a examinar, caso a caso, todos os pedidos de autorização apresentados” (parágrafo 16). Em rigor, mais do que se pronunciar sobre a natureza expressa ou tácita do acto de “autorização ecológica”, o TJ entendeu que um processo de decisão baseado em actos tácitos não constitui verdadeira avaliação.

O TJ fundamenta-se na sua própria jurisprudência. Invoca designadamente o Acórdão Luxemburgo vs. Linster (Caso C-287/98, http://eur-lex.europa.eu ], no qual o TJ deixou expressas as seguintes opiniões: “A directiva tem por objecto essencial, tal como resulta do n. 1 do respectivo artigo 2.º, que, antes da concessão da aprovação, os projectos que possam ter um impacto significativo no ambiente, nomeadamente pela sua natureza, dimensões ou localização, sejam submetidos à avaliação dos seus efeitos” (Parágrafo 52). De novo encontramos a reafirmação do princípio da avaliação prévia. Não pode haver aprovação se não tiver havido avaliação. No caso Linster, porém, não esteve em causa uma autorização tácita, mas sim um projecto de auto-estrada aprovado por acto legislativo e, por conseguinte, fora do âmbito da Directiva.

Já no Acórdão Comissão vs Itália [Caso C-360/87, http://eur-lex.europa.eu ], o TJ referiu-se expressamente à questão das “autorizações tácitas” no âmbito da directiva 80/68/CEE (águas): “The Directive provides that the refusal, grant or withdrawal of authorizations must take place by way of an express measure in accordance with precise rules of procedure which comply with a number of necessary conditions, conditions which create rights and obligations on the part of individuals” (Parágrafo 30). “Consequently, tacit authorization cannot be considered compatible with the requirements of the Directive, since in addition, as the Commission has stated, such authorization does not make it possible to carry out prior enquiries, subsequent enquiries or checks. It follows that the national legislation does not transpose the Directive with the requisite precision and clarity to satisfy fully the requirements of legal certainty” (Parágrafo 31). Embora seja clara a rejeição das autorizações tácitas, o fundamento que se aduz é a impossibilidade de realizar procedimentos de avaliação prévia.

O mesmo se aplica à opinião expressa no Acórdão Comissão vs. Alemanha [Caso C-131/88, http://eur-lex.europa.eu ], igualmente sobre a transposição da Directiva 80/68, o TJ considerou que “in view of the importance of the purpose of the investigation as regards the protection of the groundwater, the directive requires that after each investigation and in the light of the results thereof an express measure, either prohibition or authorization, must be adopted” (Parágrafo 38).

Passará o nosso DL no crivo da jurisprudência comunitária? O deferimento tácito previsto no artigo 19º, nº 1, é compatível com o Direito Comunitário? A natural relutância do legislador comunitário em imiscuir-se nos procedimentos administrativos nacionais milita a favor de uma resposta positiva. Em segundo lugar, a jurisprudência do TJ incidiu sobre casos sem avaliação técnica e sem publicidade do projecto, o que não sucede com um qualquer caso em que ocorra o deferimento tácito previsto pelo artigo 19º, nº 1. Em terceiro lugar, a tese jurisprudencial do TJ refere-se a “autorizações tácitas” (no caso Comissão vs. Bélgica a uma sequência de decisões tácitas), enquanto o deferimento tácito do artigo 19º, nº 1, se refere não a um acto final de um processo de licenciamento ou autorização, mas a um acto final de um “módulo” enxertado do procedimento de AIA) no procedimento de licenciamento industrial.