domingo, 24 de maio de 2009

A Discricionariedade Ambiental

1. O Princípio da legalidade e a discricionariedade administrativa

Como margem de livre decisão, a discricionariedade administrativa consiste numa espaço de liberdade conferido por lei à administração pública para que escolha entre várias alternativas de actuação juridicamente admissíveis. Não se trata de poder tira da “cartola” qualquer solução que respeite ao fim da norma, antes obriga o órgão competente a procurar a melhor solução para o interesse público por lei definido. Impõe-se assim a nosso ver, um dever de boa administração.

Ao conferir poder discricionário, a lei pretende e espera que seja procurada a melhor solução para face aos factos e circunstâncias in caso.

A doutrina aponta com substratos da discricionariedade, razões político-prácticas e razões jurídicas. Das primeiras decorre o facto de ser impossível e indesejável que a lei regule minuciosamente todas as situações. Já segundo as razões jurídicas a margem de liberdade que a lei confere é indispensável quer para prossecução do interesse público, quer para a defesa dos direitos dos particulares.
São estes os fundamentos que justificam um ângulo de abertura no grau de densificação da norma habilitante.

O exercício da discricionariedade implica sempre a formulação de juízos de prognose, partindo do caso, a administração deve adequar os meios escolhidos aos seus contornos relevantes à luz do interesse público, tendo em conta o futuro.

Trata-se assim de um poder derivado da lei, que só existe quando ela o confere e na medida em que o configura. Fora do quadro limitativo legal é arbitrário, consubstanciando um vício de desvio de poder.


2. O problema da discricionariedade técnica

É entendimento geral na doutrina e na jurisprudência que a discricionariedade técnica é uma zona de actuação administrativa vinculada e insindicável. Ora isto não nos parece muito acertado.

A única razão por que o tribunal se abstém de julgar uma decisão da administração é por que essa decisão foi emitida com base num juízo de mérito, pois a norma admite várias soluções legais, ora a função jurisdicional circunscreve-se ao controlo de legalidade. A discricionariedade perante o tribunal é reflexo da discricionariedade perante a lei.

É absurdo limitar o poder dos juízes neste campo à verificação de erros manifestos de apreciação, pois isto implica um obstar ao controlo pleno dos actos em causa.


Não é o facto de administração recorrer a critérios técnicos que altera tudo: ou há discricionariedade e o tribunal abstém-se de verificar o mérito, ou não há e deve averiguar da legalidade da decisão.

Uma decisão técnica pode ou não ser discricionária. Como bem sustenta Tiago Antunes a discricionariedade não deixa de ser discricionariedade por ser técnica. Trata-se igualmente de margem de livre decisão entre diferentes juízos técnicos possíveis. É a lei que quer conceder essa liberdade.

Toda a argumentação deduzida pela doutrina tradicional cai por terra, ao admitir que apesar da discricionariedade técnica ser um campo vinculado e insindicável, podem haver caos de utilização de conceitos indeterminados.

Como ensina Afonso Queiró “a lei em muitos casos recorre a conceitos técnicos, cujo conteúdo é determinável com recurso à generalidade das ciências”. Não se questiona esta possibilidade, a mas sim a ideia de que o recurso à técnica pressupõe vinculação. È praticamente um contra-senso defender a vinculação e ao mesmo tempo a insindicabilidade.

Em conclusão na discricionariedade técnica pode haver liberdade ou não, é necessário uma interpretação da norma, não sendo possível, diz Maria Luísa Duarte, prevalece a vontade da administração.



2.1 As cláusulas de progresso científico

Para responder à constante necessidade de constante adaptação tecnológica dos focos poluentes, o Direito Comunitário, pelo sei primado impôs a chamadas cláusulas de progresso científico.

O D.L n.º 194/2000, de 21 de Agosto veio transpor para a nossa ordem jurídica, a directiva comunitária que criou o regime jurídico da licença ambiental.

Este regime condiciona o exercício de certas actividades à obtenção de uma licença ambiental, com vista a “evitar a as emissões dessas actividades para o ar, água, solo e subsolo”, exercendo um controlo integrado da poluição delas proveniente.

Esta licença para além de fixar tectos máximos, adopta uma cláusula de progresso científico, ao exigir a utilização das melhores técnicas disponíveis.

O conceito de “melhores técnicas disponíveis” surge no nº1 do art. 2.º do diploma supra referido, com leitura articulada com o art.9.º que remete a sua concretização para o anexo IV.

A doutrina é unânime em considerar que estamos perante um conceito verdadeiramente indeterminado.

A melhor forma de saber onde está a margem de livre apreciação reside nos adjectivos utilizados pelo legislador.

O critério deve ser fixado livremente pela administração, tendo em conta o fim legal. Tudo depende dos factores que são utilizados pela administração. Obviamente que se exige por parte da administração um juízo de prognose.

Deve a administração proceder a uma correcta ponderação das tecnologias que tem ao seu dispor.

Neste âmbito parece-nos que se exige aplicação da vertente em sentido restrito do princípio da proporcionalidade. Quais os custos e benefícios que a densificação desta cláusula vai comportar para a salvaguarda dos ecossistemas e para o desenvolvimento económico.


A discricionariedade ambiental
3.1 Definição e natureza

O ambiente é efectivamente uma área por excelência de manifestação da discricionariedade administrativa, dado o ser carácter dinâmico e inovador.

A especialidade desta área por confronto com outros sectores da actividade administrativa, decorre da amplitude e heterogeneidade de interesses envolvidos e da diferente relevância que vão adquirindo ao longo do procedimento.

A lei reconhece à administração um alargado poder discricionário na escolha das soluções que considerar mais adequadas no contexto do desenvolvimento ambiental de um determinado território.

A vinculação estrita à lei ponha em causa a função administrativa, impedindo a administração de se adaptar aos contornos do caso concreto. Será grande o risco de lesão do Estado Social, distanciar a administração dos cidadãos só a torna mais ineficiente.

3.2 O paralelismo com a actividade de planeamento

Um dos principais meios de defesa e protecção do meio ambiente de que a administração dispõe é precisamente o planeamento. No nosso entender os planos ao definirem o regime de uso, ocupação e transformação do solo, tocam de perto com as questões ambientais, afectando as espécies e os seus habitats.

O direito do ambiente e o direito do urbanismo apesar de serem disciplinas autónomas, elas encontram-se ligados por um apertado laço de união, algo que resulta da alínea b) do nº2 do art.66.º CRP.

Os princípios ambientais influenciam o direito do urbanismo, tanto na fase de elaboração e aprovação dos planos territoriais, como na fase de licenciamento da realização de projectos públicos e privados susceptíveis de produzirem efeitos significativos no ambiente.

Dando um exemplo concreto, os planos especiais visam a tutela de interesses públicos específicos, através do estabelecimento de regimes de salvaguarda de recursos e valores naturais.

Quer na discricionariedade de planeamento, quer na discricionariedade ambiental, a administração deve ponderar e conciliar uma multiplicidade de interesses em presença numa determinada parcela de território (art. 9.º do D.L nº 380/99 que estabelece o RJIGT). Conciliar interesses não se extrai da lei, é a ponderação do caso que dá corpo à solução. È precisamente este ponto de as afasta da discricionariedade administrativa.

É na escolha dos fins a prosseguir que se revela a sua natureza predominantemente discricionária e não na liberdade de conformação, pois é a lei que define como se processa cada fase do procedimento ambiental e qual o conteúdo material dos planos. Com sustenta Vieira de Andrade trata-se de uma discricionariedade orientada para “programas finais”.

Visto que nestas duas áreas a administração actua munida de planos, a margem de liberdade é mais ampla, dada a sua natureza normativa.

Por vezes a lei á tão vaga que dificulta a invocação de direitos por parte dos particulares, damos como exemplo os arts. 13.º e 14.º do D.L 380/99.

È neste ponto que reside o problema, sendo a discricionariedade maior, há segundo Tomás Fernandez um poder de “inovação” que transcende as simples faculdades administrativas. A doutrina é praticamente unânime em considerar que a própria legalidade em sentido formal se vai apagando, fazendo com que a norma habilitadora quase dê lugar a uma norma programática.

Por outro lado, alguma doutrina italiana considera excessiva a margem de livre decisão de que goza a administração no âmbito ambiental e do ordenamento do território, defendendo a necessidade de o legislador estabelecer limites, ora esta solução pode comportar problemas pela existência de uma reserva de administração perante o poder legislativo.

4. A Procedimentalização como forma de racionalizar a discricionariedade

Por força da alínea c) do art. 3.º da Lei nº 11/ 87, que consagra o princípio da participação, os diferentes grupos sociais devem intervir na formulação e execução da política do ambiente e ordenamento do território, através dos órgãos competentes da administração central, regional e local e de outras pessoas colectivas de direito público ou de pessoas e entes privados.

A administração deve ouvir os interessados, promovendo a sua participação na formação de todos os instrumentos da política de ambiente e de ordenamento do território. A lei confere aos interessados um direitos de participação objectiva e subjectiva e um direito de informação, permitindo uma decisão mais legítima.

Cabe à administração em parceria com as restantes entidades públicas confrontar os múltiplos interesses que convergem num determinado território. Há que ponderá-los com uma visão sustentável, através de juízos de prognose, e procurar superar os conflitos que possam surgir, para assim, se concretizar o bem comum, expresso num decisão final razoável, lógica e previsível.

Esta cooperação é fundamental, para o equilíbrio possível entre protecção da confiança e interesse público, estabelecendo balizar à administração.

Há no seio da actividade ambiental uma dialéctica entre a segurança jurídica e a protecção da confiança, por um lado, e a dinâmica do interesse público do outro. O interesse público não prevalece acima de tudo e de todos, nenhum interesse é dispensável.


5. Limites e controlo à discricionariedade

A discricionariedade não é uma margem de liberdade total, só existe quando a lei a confere e na medida em que a configura.

A imposição de limites à discricionariedade é uma consequência do princípio da legalidade, e uma exigência do princípio da tutela jurisdicional efectiva dos particulares perante a administração (art. 266.º CRP).

Podemos distinguir os limites legais e os limites imanentes. Os limites legais consistem em requisitos de legalidade que incidem sobre os pressupostos e elementos da conduta da administração: fim, competência, vontade e existência de margem de livre decisão. Do princípio da legalidade retiramos seis limites:

- Lei fixa os objectivos e medidas da política ambiental, assim como as áreas de actuação naturais e humanas ou componentes ambientais (arts.4.º, 6.º e 17.º Lei nº 11/87);

- Lei define os diversos instrumentos da política de ambiente, assim como o seu conteúdo material, e os organismos responsáveis pela política ambiental (arts27.º e 37.º);

- Regime especial para certos tipos de bens do domínio público não derrogáveis, ex.: REN e RAN;

- Tipicidade dos planos (art.2.º D.L 380/99);

- Fixação de standards ambientais, isto é, critérios ou padrões que estabelecem um compromisso entre a actividade industrial e a protecção da natureza, consagrando os limites máximos de tolerabilidade de poluição. No entender de Fernando Condesso, os standards ambientais “traduzem regras essenciais de protecção, que vão evoluindo de acordo com a ciência e a técnica, procurando medir os riscos em termos que permitam o controlo dos objectivos ambientais e a repressão de comportamentos inadimplentes”.

Como defende Tiago Antunes a incidência da técnica nas decisões administrativas ambientais pode dar lugar a actuações discricionárias, com efeitos directos sobre os particulares. Ora os standards comportam uma eficácia redutora da discricionariedade.

Concluindo, a administração elabora standards dirigidos a ela própria, autovincula-se quando ao exercício futuro da discricionariedade técnica. Desta forma garantem o princípio da igualdade.

Porém há que sublinhar um aspecto importante, como bem frisa Sérvulo Correia é possível uma auto-vinculação na discricionariedade, mas isso não pode implicar uma “regra de precedente administrativo”, sob pena de se esvaziar a discricionariedade.

Consideramos que a administração pode alterar o critério de decisão, desde que fundamentadamente o justifique, é o que resulta do art. 124.º do CPA. A própria vertente positiva da imparcialidade o exige, se administração se vincula, deixa de analisar contornos do caso e de ponderar interesses.

- Dever de fundamentação dos actos.

No que concerne aos limites imanentes, eles ganham corpo pelos princípios gerais e especiais da actividade administrativa (art. 266.º nº1 da CRP). São eles_

- Princípios da proporcionalidade e da igualdade;

- Princípio da boa fé;

- Princípio da protecção das posições jurídicas subjectivas dos particulares;

- Princípio da justa ponderação e superação de conflitos;

- Princípio da precaução e da prevenção;

- Princípios da hierarquia, contra-corrente e articulação.

Cabe aos tribunais fazer um controlo restrito á legalidade, tendo em atenção os casos de “cheque em branco” à administração, e de redução a zero da margem de livre decisão, em que passa a existir somente uma decisão admissível. Admitimos a sua dificuldade, pois a lei não define interesse público ambiental.


6. Conclusão

Em conclusão, é ampla a discricionariedade de que dispõe a administração no âmbito da actividade ambiental. Ela é essencial dado que o direito não consegue prever todas as situações, então é natural a remissão para a técnica, para preencher as aberturas deixadas pela lei.

Como conclui Tiago Antunes “ a margem de apreciação técnica é resultado da incapacidade da norma jurídica em abarcar o universo da ciência”.

Em pleno Estado Pós-Social, a proliferação de uma margem de livre decisão de e uma margem de livre apreciação, através de conceitos indeterminados, permitem que a administração se adapte à realidade concreta, configurando uma melhor decisão.

Só desta forma a administração pública ambiental consegue a articulação ente a protecção do ambiente e o desenvolvimento económico, com vista a um desenvolvimento sustentável.




Bibliografia:

Antunes, Tiago; O Ambiente entre o Direito e a Técnica; AAFDL; Lisboa; 2003

Duarte, Maria Luísa; A Discricionariedade Administrativa e os Conceitos Jurídicos Indeterminados; in BMJ; 370

Miranda, João; A Dinâmica de Planeamento do Território; Coimbra editora; 2002

Queiró, Afonso; Lições de Direito Administrativo; Vol. I; Coimbra; 1976