domingo, 24 de maio de 2009

Relações Jurídicas Multilaterais

Importa antes de mais, concretizar a terminologia “Direito do Ambiente” para posteriormente se perceber como este direito pode constituir o fundamento para a criação de relações jurídicas ambientais de natureza multilateral, tanto de origem pública como privada.
Segue o entendimento do Prof. Vasco Pereira da Silva de que o art. 66º da CRP não deixa margem para dúvidas: o direito ao Ambiente é um direito fundamental, autónomo e antropocêntrico! E está balizado por três características, nomeadamente a “protuberância de uma dimensão subjectiva” que se manifesta nos direitos de defesa contra agressões de entidades públicas e privadas, na esfera individual de cada um; “ a dimensão objectiva “que compreende uma atitude positiva por parte do Estado, que deve estabelecer deveres de actuação e tarefas de concretização para os poderes públicos, e finalmente a “tradução do princípio da dignidade humana” como objectivo maior do Estado de Direito Democrático.
No seguimento da questão supra mencionada, o Direito ao Ambiente é um direito fundamental de terceira geração previsto no art. 66º da CRP e, como todos os direitos fundamentais, reveste uma dupla dimensão. Ou seja, traduz-se por um lado, numa pretensão jurídica negativa exigindo dos cidadãos e do Estado abstenções de condutas lesivas do ambiente, e por outro, numa pretensão jurídica positiva, constituindo verdadeiros deveres da sociedade e do Estado em preservar o equilíbrio ecológico e zelar pelo património natural. Neste sentido, os Professores Vasco Pereira da Silva e Gomes Canotilho reconhecem no art. 66º da CRP um verdadeiro direito fundamental subjectivo que se concretiza no dever do Estado de combater perigos concretos incidentes sobre o ambiente, a fim de proteger outros direitos fundamentais com ele ligados, como o direito à vida, à saúde, à integridade física; como também no dever de proteger os cidadãos perante outros particulares que tenham comportamentos lesivos. Mais, para o Professor, a via mais adequada de tutela do ambiente é a que adopta uma perspectiva subjectivista, partindo dos direitos fundamentais, que legitimam os particulares na defesa do ambiente contra o Estado e o poder público, e contra entidades privadas.
É também neste domínio, que entra em contradição a posição da Prof. Carla Amado Gomes. Embora a professora não deixe de falar num direito fundamental consagrado no art. 66 da CRP, nega-lhe, contudo, a subjectividade dada a “dificuldade que há em conciliar um bem cuja fruição pertence aos membros da comunidade em geral com a estrutura do direito subjectivo, que pressupõe a existência de um substracto susceptível de apropriação individual”. A professora propugna assim uma configuração do direito ao ambiente “mais objectiva que subjectiva”, realçando o dever de todos de preservar os bens ambientais (“direito a usar/ dever de preservar”), sendo que, baseia a vertente objectiva no facto de não ser possível a cada um de nós proceder a uma apropriação individual do ambiente e de o mesmo ter uma “vocação transgeracional”. Mais, a Autora contesta a qualificação do direito ao ambiente como direito subjectivo público (afastando-se dos Autores supra referidos) com base na desnecessidade de tutela, uma vez que o contencioso administrativo, por si só, já garante uma extensão de legitimidade, de que é exemplo a acção popular. Ora o Prof. Vasco Pereira da Silva refuta tal argumento avançando com o facto de se conceber um direito ao ambiente não significa dizer que tal bem é susceptível de apropriação, mas tão só que pode dar origem a relações jurídicas em que existem direitos e deveres decorrentes da sua fruição individual.
No que concerne ao regime aplicável ao direito ao ambiente, deparamo-nos com uma dualidade de regimes jurídicos: os respeitantes aos direitos, liberdades e garantias (marcado por uma vertente negativa), e o respeitante aos direitos económicos, sociais e culturais (que apresentam uma certa subalternização face aos primeiros e são marcados por uma vertente positiva). Embora este direito surja em termos de “arrumação sistemática”, como sendo um direito social, fazendo parte da categoria mais ampla de Direitos Económicos, Sociais e Culturais, tal não significa que só seja de aplicar tal regime, pois como afirmam os Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira, o direito ao ambiente é por um lado negativo (como direito à abstenção de comportamentos nocivos ao ambiente) sendo de aplicar neste aspecto o regime dos direitos, liberdades e garantias), e por outro lado positivo (como direito a uma acção do Estado no sentido de proteger o ambiente conforme o disposto no art. 66º, nº2 da CRP) sendo por essa via também aplicável o regime dos direitos económicos, sociais e culturais. O Prof. Vasco Pereira da Silva subscreve esta estrutura bifronte, ao defender que tal separação não é estanque, e embora critique a estrutura do art. 17º da CRP que recorre à analogia para integrar no regime dos direitos, liberdades e garantias, os direitos económicos, diz tratar-se de uma regra muito importante pois permite traçar um regime jurídico unificado para todos os direitos fundamentais.
Assim, quando no caso concreto, predominar a dimensão negativa do direito ao ambiente, por exemplo, um particular prejudicado pela ingerência ilegítima dos poderes públicos na sua esfera individual, devemos fazer actuar o regime dos Direitos, Liberdades e Garantias; se ao invés, o particular surgir a reclamar uma prestação estadual que lhe é devida, já o caso reclama a intervenção do regime característico dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais.
Ora, este entendimento “abre a porta” à consideração do direito fundamental ao ambiente como fundamento para a criação de relações jurídicas ambientais multilaterais. Isto porque, reconhecer o direito fundamental ao Ambiente conduz-nos, seguindo o entendimento do Prof. Vasco Pereira da Silva, ao “alargamento dos direitos subjectivos públicos” e à consequente “reformulação do conceito de relação jurídica” de modo a abranger nas relações administrativas, outros sujeitos, para além daqueles que são os destinatários imediatos dos actos, os quais, deixam assim, de ser vistos como “terceiros” perante a máquina administrativa. Passa então, a falar-se de “relação multilateral”, para explicar a teia de relações que se vai estabelecer entre, a “Administração, o poluidor e o privado que é lesado de forma grave no seu direito fundamental”.
O alargamento dos direitos subjectivos públicos, levou concludentemente, ao abandono do clássico esquema paralelo, isto é, de um lado os poderes da Administração, e do outro, um ou vários cidadãos, com interesses idênticos, passando-se a integrar do lado dos particulares um complexo multipolar de interesses diferentes ou até contrapostos, o que leva os decisores jurídicos a ponderar interesses públicos e privados em causa, sem nunca preterir da consideração do bem jurídico ambiente como direito fundamental.
Como há pouco referido, já não está em jogo só a “Administração versus poluidor”, mas também particulares lesados, verdadeiros titulares de direitos subjectivos públicos, que detêm posições substantivas de vantagem conferidas pela lei, resultantes do dever geral da Administração ou do direito de defesa estabelecido constitucionalmente, conforme resulta do disposto no art. 53º do CPA.
São assim, como possíveis sujeitos deste tipo de relações, os sujeitos privados, nos quais o Professor inclui os “sujeitos titulares de direitos subjectivos”, as pessoas colectivas privadas (de que são exemplo as “Organizações Não Governamentais de Defesa do Ambiente – ONGA´s) e, ainda, os cidadãos e associações e fundações cujo escopo seja a protecção ambiental no exercício da acção popular, para a defesa da colectividade e do interesse público (arts. 1º e 2º da Lei 83/95), alargando-se deste modo, a legitimidade a pessoas que não têm um interesse directo na demanda. A outra categoria é integrada pelos sujeitos públicos, designadamente as pessoas colectivas públicas e órgãos da Administração.
Ainda no que tange ao conceito de relações multilaterais, cumpre referir a posição do Prof. Gomes Canotilho. Ambos os Professores estão em consonância quanto à consideração do direito ao Ambiente, como um direito fundamental, com acolhimento constitucional, diferindo apenas na terminologia do conceito supra mencionado. O Prof. Gomes Canotilho prefere usar a expressão ” relações multipolares ou poligonais” para designar as relações que se estabelecem entre as “três partes interessadas: o promotor, a Administração e os eventuais afectados”. Considera o Professor que tal relação deve ponderar os interesses do destinatário do acto, bem como, vários outros direitos e interesses públicos, com especial realce para a protecção do meio ambiente.
Estas relações multilaterais, assim chamadas obviamente por nelas figurarem várias partes, definem-se sobretudo, por estabelecerem uma rede de ligações jurídicas que envolvem "direitos e deveres recíprocos".

Em suma, a consideração do direito ao Ambiente como Direito Fundamental, faz surgir na esfera jurídica dos particulares um direito subjectivo público, gerando por sua vez o aparecimento de relações jurídicas multilaterais, e mais importante, deixa de considerar o particular como “terceiro face à relação jurídica ambiental que se estabelece entre Administração e imediato destinatário da actuação administrativa”. Enriquecido na sua esfera jurídica com o direito subjectivo público ao gozo dos bens ambientais, o particular, perante uma violação dos seus interesses juridicamente protegidos, pode agora intervir na relação jurídica administrativa ambiental de forma a ser ressarcido, fazendo imperar o seu direito fundamental ao Ambiente.