terça-feira, 26 de maio de 2009

o tripé ambiental: a "questão ecológica", a Técnica e o Direito

O Tripé ambiental:

a “questão ecológica”, a Técnica e o Direito

A “questão ecológica”

Peritos de várias áreas científicas, na conjugação de conhecimentos sobre o ambiente, foram dando origem a uma comunidade científica unida pelo mesmo sentimento de desconforto perante o que iam descobrindo: a degradação crescente do ambiente e a consequente ameaça para o futuro da vida na Terra. Surge então o problema da “questão ecológica”, questão cultural que consiste num ambiente criado artificialmente pelo homem através de uma acção cujos efeitos oscilam entre avanços socialmente benéficos e incessantes ameaças biológicas, intensificados na civilização técnica e industrial.

Há um sentimento de injustiça no ar, que determina propostas de intervenção estadual, destinadas a reequilibrar o que é compreendido como ruptura do sistema de justiça, uma ruptura de relacionamento entre as gerações presentes e as gerações futuras.

A intervenção estatal não é simples e anda sempre acompanhada de incerteza e dúvidas, quer quanto às melhores propostas de solução, quer quanto às exactas consequências futuras de cada intervenção. Esta acção tida como necessária anda sempre de braço dado com o risco.

Risco este que atravessa o direito, face ao deficit generalizado de execução de normas ambientais contendo padrões de conduta, pois as expectativas que essas normas criam não conferem segurança suficiente às condutas sociais; por outro lado, o próprio direito pode ser um catalisador de risco ou ameaça, se definir condutas que mais tarde se verifiquem serem em si mesmas lesivas.

Apela-se à alteração de comportamentos, procuram-se formas de produção de bens e serviços adequadas à escassez de recursos naturais, investe-se em energias alternativas, na reutilização e reciclagem de materiais, mas isso não basta para controlar a “questão ecológica”. É necessário apelar ao direito e à norma legal, para que com a sua autoridade e força coerciva, altere comportamentos, estando também sempre actualizado para acompanhar a dinâmica científica e tecnológica.

O direito deverá incorporar os efeitos práticos que resultam da adopção do comportamento definido na norma e os conhecimentos científicos e técnicos que permitem a modelação do comportamento devido, determinado pela norma. É necessário que para além do cumprimento da norma jurídica se avalie se os efeitos coincidem com as expectativas que a modelação do comportamento criou.

O juízo técnico-científico/ecológico deverá “casar-se” com o juízo técnico-jurídico, pois os conhecimentos ecológicos determinam o conteúdo do comportamento juridicamente devido e a norma passará a conter um programa finalístico e ser avaliada também em razão do sucesso ou insucesso de realização do objectivo pretendido.

Apesar de a norma (tal como a ciência) ser portadora de incerteza, a avaliação de resultados fácticos, suportada por conhecimentos científicos mais avançados, permite aperfeiçoá-la, até novas descobertas científicas determinarem novos horizontes. Isto parece mostrar que a dinâmica evolutiva dos conhecimentos científicos força a sua entrada no sistema normativo.

A estreita ligação da norma ambiental à ciência e à técnica, estas últimas sempre em evolução, pressionadas por novas descobertas, ao conferir à norma jurídica um acentuado conteúdo técnico-legislativo, desencadeia processos de “avalanche legislativa”, arrastando a norma para um turbilhão de revogações, totais e parciais.

O envolvimento dos juristas no progresso técnico-científico é, em regra, obtido através da aquisição de conhecimentos de outras áreas científicas, descurando a axiologia jurídica. Apesar do ganho acrescido de compreensão dos problemas que o direito procura resolver, os juristas descaracterizam-se e tendem a afastar-se da defesa intransigente dos valores da ciência que cultivam, a ciência do direito.

O desejo de intervenção pressiona no sentido da acção no tempo curto, o que não permite que o sentimento de justiça dos cultores da ciência ecológica se generalize na comunidade e a justiça não se transmite por intermédio da norma formalizada. A justiça flui de uma base cultural sedimentada, traduz uma aceitação crítica generalizada por parte da comunidade, tecida em equilíbrios instáveis que permitem a sua recriação permanente.

Mais do que garantir a natureza imperativa do direito, a vinculatividade da norma e os mecanismos de sanção jurídica a que dá lugar o incumprimento, cabe aos juristas compreender a realidade social que exige o direito, as transformações subjacentes à norma ambiental, bem como a eficácia num quadro amplo de interactividade subjectiva, dentro de um processo discursivo em que a interpretação e a aplicação da norma são acompanhadas pela avaliação dos resultados e destes indissociáveis.

A reflexão ético-filosofica do direito conduziu ao enraizamento de um novo dever ser do homem, um dever ser que abre caminhos de sustentabilidade ambiental para o desenvolvimento: responsabilidade pelo futuro.

Enquanto a politica traça os objectivos de acordo com uma visão prospectiva (finalidade programática), assente na pretensão de garantir continuidade ao desenvolvimento, e desenha uma estratégia em que a acção é decisão, o direito, no ético jurídico que o identifica, renova a sua validade numa axiologia em que o futuro do homem entra como um processo em construção.

Depois de verificar que, no custo de produção, não entrava o custo ambiental (externalidades), o que promove e adensa a “questão ecológica”, a análise económica procurou soluções. Uma solução parte da intervenção do Estado, a outra parte da acção do mercado.

A resposta que a ciência económica pode dar à “questão ecológica” passa pela mudança comportamental dos cidadãos, enquanto consumidores, e dos agentes económicos, enquanto capazes de interiorizar uma responsabilidade social, volvida em intervenção cívica, bem como do Estado, capaz de estimular acções e difundir orientações sem impor comportamentos, agente de uma mudança que não lhe pertence porque correspondente a uma liberdade que não detém.

A pretensão de universalidade da resposta à questão ambiental corresponde a uma acção sem fronteiras estaduais, de acordo com uma ordem que tem na cidadania mundial, a pedra de toque, mediatizada pelos diferentes Estados. Afirmar que “o ambiente é uma construção social” (Jean-Guy Vaillancourt), significa consciencializar que a compreensão e o controlo da “questão ecológica” exige mais do que um olhar sobre o mundo em redor, exige transformação. E, para essa transformação, a ética e o direito revelam-se de importância decisivas, conformando políticas públicas transversais em que as acções humanitárias têm especial realce.

Não surpreende que se vão moldando, em comunidades científicas e conferências internacionais, princípios orientadores como emanações directas de uma justiça nova, intra e intergeracional. Estes princípios, cedo volvidos em princípios jurídicos, obedecem a uma lógica de formação diferente dos princípios jurídicos tradicionais.

Os princípios jurídicos ambientais são moldados a partir da ideia de justiça, tal como emana do consenso obtido em conferências específicas em que, em regra, participam comunidades cientificas, representantes dos Estados, organizações não governamentais, um consenso sobre o controlo da “questão ecológica” e o futuro da vida na Terra e, fundamentalmente, a responsabilidade que a todos incumbe em razão desse futuro – “conferências de consensos”.

Das “conferências de consensos” de onde emanam os princípios orientadores em matéria ambiental não se deduzem obrigações jurídicas para as entidades participantes. O peso das referidas conferências internacionais é avaliado através das recomendações, directrizes ou simples declarações dos Chefes de Estado e, fundamentalmente, através dos efeitos que tais recomendações, directrizes e declarações produzem junto dos cidadãos pelo mundo fora. A justiça que lhes subjaz não se impõe, porque é pertença do homem convivente enquanto comunitariamente se reflecte e recebe dos outros o reflexo de si próprio, em liberdade. As recomendações, directrizes, as declarações de princípios, têm de entrar num discurso argumentativo comunitariamente ampliado, por isso mesmo não técnico-científico, a todos acessível.

Uma acção fundada numa ética de responsabilidade, exigente, em que cada um age cooperativamente, com precaução e prudência, disponibilizando com transparência os resultados da observação, as informações indispensáveis ao conhecimento activo, reactivo e interactivo com o meio ambiente. Trata-se de uma acção que demanda uma cidadania madura, cada vez melhor informada e sabedora, imbuída por um sentimento de justiça mais fundo e alargado – justiça ambiental, intra e intergeracional.

No desenvolvimento das políticas públicas ambientais a partir do Estado, mas integradas em politicas publicas europeias e mundiais, a intransigente defesa da liberdade do homem é essencial. A reacção à “ecologizaçao” do direito, que transformou, através da norma geral e abstracta, a incerteza cientifica em certeza social, que trouxe para a norma uma hipertecnicidade e uma instabilidade que conduziu à sua ineficácia e a descredibilizou, contribuindo para a perda de sentido do direito, é uma reacção em nome da defesa da liberdade. É uma reacção assente na consciência de que o poder estadual se não pode confundir com o direito e na ideia de que a justiça está, em regra, ausente da norma ambiental tradicional.

A técnica

Na sociedade tecnológica em que vivemos, tudo tem uma componente técnica, há regras técnicas para tudo e todas as decisões têm uma sustentação técnica. A Técnica invadiu todos os domínios da vida humana, todos os sectores da sociedade, desde as empresas aos cidadãos e à própria Administração Publica. Aliás, uma das características apontadas à Administração do Estado Social é precisamente o facto de ela recorrer frequentemente à Técnica. Como refere Vasco Pereira da Silva “outra manifestação do recuo da Administração autoritária é a que decorre da tecnicização da actividade administrativa.

Na sua constante expansão, a Técnica atingiu também o universo jurídico, pois o Direito não esta imune a esta verdadeira “revolução tecnológica”. Assiste-se a um progressivo e crescente recurso das normas jurídicas a saberes técnicos especializados e regras de determinadas artes.

O Direito Ambiental assume algumas características muito particulares que o permitem distinguir de outras áreas do saber jurídico – uma delas é, sem dúvida, o grande apelo a conhecimentos e regras de carácter técnico. Controlo integrado da poluição, licenciamento industrial, avaliação de impacte ambiental, regras sobre qualidades das águas, do solo, do ar, limites máximos de ruído, etc. – todos estes domínios tem uma indisfarçável componente técnica.

Como refere José Esteve Pardo, “ o Direito do Ambiente apresenta uma componente técnica cujo significado, progressivamente posto em evidência pela sua importância e complexidade, tem feito dela um elemento central e característico. Quer isto dizer que ultrapassou, em muitos casos, o carácter acessório, subordinado, com que se apresenta em outros sectores”.

Um dos domínios onde o Direito do Ambiente pode e deve desempenhar esse papel é precisamente o das relações entre a Técnica e o Direito por varias ordens de razoes.

Em primeiro lugar, trata-se de uma matéria pouco trabalhada, que necessita urgentemente de ser estudada. Apesar de não estarmos habituados nem preparados para lidar com esta realidade, desconhecemos as suas características fundamentais e não sabemos como reagir perante os seus efeitos. Urge, portanto, que os juristas abram os olhos para este fenómeno, o estudem, o problematizem e se preparem para as consequências que dele podem advir.

Em segundo lugar, tratando-se de uma tónica fulcral do Direito do Ambiente, que o caracteriza e autonomiza dos demais ramos de Direito, é natural que seja a doutrina jus-ambientalista a debruçar-se sobre o efeito da Técnica no Direito, aprofundando as suas causas, a sua evolução e investigando as alterações que trará ao nível dos vários institutos e dos cânones jurídicos estabelecidos.

Em terceiro lugar, o entendimento tradicional da “discricionariedade técnica” em Direito Administrativo está profundamente desactualizado e só teria a beneficiar com as inovações e novas perspectivas que só um Direito especial, jovem, multidisciplinar e em efervescente elaboração dogmática, pode trazer.

Surge, porém, uma questão. Houve – ou há – uma invasão do Direito por parte da Técnica, ou antes uma desregulamentação normativa por parte do Direito com um consequente reenvio para a Técnica?

Não foi tanto a Técnica que invadiu ou conquistou o Direito, houve uma sim uma remissão jurídica para a Ciência e a Tecnologia. Mas essa desregulamentação normativa correspondeu a uma vontade e a um imperativo de intervenção, e não de desintervenção.

A Técnica veio para ficar e é ela que rege uma parte significativa das decisões ambientais, levantando-se uma série de interrogações. Sabemos que a Lei não é capaz de prever e regular todas as situações, remetendo amiúde para a Técnica (cuja especificidade e mutabilidade repelem a norma jurídica). Cabe, pois, à Administração decidir, de acordo com determinados parâmetros técnicos. Cria-se, portanto, um espaço de actuação da Administração, não dependente da Lei, mas sim sujeito à Técnica…

O Direito

A “questão ecológica” obriga a uma reflexão profunda sobre o ser, o direito e o modo de o manifestar. Como realidade cultural, o direito realiza-se ao manifestar-se, num fazer fazendo-se, reflectindo-se, experimentando.

À sincronização da reflexão com a acção subjaz a liberdade. Ora, o pleno exercício dos direitos de liberdade, nomeadamente dos direitos de participação politica, exige, em especial no âmbito da complexa “questão ecológica”, informações actualizadas, credíveis e acessíveis. Por sua vez, a importância, dimensão e qualidade das informações dependem da forma como são apresentadas e, em especial, da entidade que as veicula.

A transmissão da informação pelo Estado, legitimada no direito, acrescenta qualidade à informação, independentemente do seu efectivo conteúdo. À integração da diversidade ambiental na “informação” prestada pelo Estado mas também da informação veiculada por outros organismos, nomeadamente universidades, corresponde a nível local, à integração das memórias, dos contextos sociais, das experiências, que a todos situam e todos coenvolvem na decisão, como seus “actores”, em liberdade.

Para além das tradicionais formas de manifestar a acção administrativa do Estado (regulamento, acto, contrato, operações materiais), prestar informações ambientais exige a atenção redobrada dos juristas, porque nessa actividade passou a residir, directa ou indirectamente (neste caso incorporada em alertas, avisos, recomendações, conselhos), a confiança possível de construção do futuro em comunidade.

O Estado e as autarquias locais limitam-se a alertar a comunidade em geral e os cidadãos em particular para problemas, suscitam empenhamentos da parte dos cidadãos, incentivam todos a ampliarem a respectiva área de atenção no momento das tomadas de decisão, estimulam novas formas de agir, em liberdade, incitam a acompanhar e controlar o desenvolvimento da acção, nas suas inúmeras consequências.

A informação administrativa ambiental deve ser fundamentada e acessível, chamando a atenção para pontos científicos ou tecnicamente controvertidos e, em regra, deve ser acompanhada de ficha técnica, para que os destinatários, em razão do respectivo grau de conhecimentos e formação, possam aferir os pressupostos e avaliar a argumentação técnica, agindo em conformidade. Diferentemente da fundamentação dos actos administrativos, vocacionada para o aperfeiçoamento dos conteúdos da acção administrativa, para a pratica de actos juridicamente válidos, e, ainda, para uma maior qualidade da defesa jurídica dos destinatários, em caso de impugnação, a fundamentação da informação ambiental destina-se a simplificar a complexidade, dando a conhecer a um grande número de pessoas, elementos de compreensão da realidade só detidos por alguns, com isso conferindo mais qualificado uso à liberdade.

Acolher a sustentabilidade ambiental do desenvolvimento como finalidade do Estado envolve um caminhar com precaução. Pautar a acção estadual, particularmente a administrativa, pelo direito, corresponde a um desafio, essencialmente para o direito, se quiser manter a sua função condutora e de sentido, geradora da confiança na comunidade. A atenção à autonomia do direito como ordem de validade, assente na pessoa e na sua axiologia, hoje e no futuro, é a questão jurídica por excelência, cuja resposta é decisiva também para a legitimação do Estado. A incorporação do risco no direito não transforma o direito em “ordem de finalidade”. A sua autonomia como “ordem de validade” mantém-se, legitimando a acção, enquanto, por seu intermédio, impõe não só que a pessoa seja, mas também que continue a ser. Através do direito e inerente garantia da axiologia da pessoa, o Estado é convocado a ter, em situação, comportamentos de respeito para com todos quantos possam, pela acção, ser afectados, nomeadamente gerações futuras. Introduzir coerência em múltiplas acções, individuais e de grupo, gerindo os meios disponíveis, sem nunca perder de vista o fim a alcançar, é o desafio do Estado de Justiça Ambiental.

A acção do Estado, traduzida na garantia de sustentabilidade ambiental do desenvolvimento, concentra-se em decisões de prognose, na definição de alternativas de acção, lidando com o risco e a incerteza através da colaboração com entidades de espaços políticos alargados, europeus ou mundiais, e entidades que congregam cidadãos, em liberdade, e, mesmo, cidadãos individualmente considerados.

A acção estadual não impõe comportamentos, divulga deveres de cuidado, informa, incentiva empenhamentos, estimula acções, potenciando uma cidadania participativa. Ao mesmo tempo, realça a indissolúvel ligação da sua acção aos fins que lhe conferem a razão de agir – partilha dos riscos e dos custos da vida em comunidade, no quadro de um desenvolvimento económico e social ambientalmente sustentável. De tudo resulta um conjunto de acções formais ou informais do Estado, cuja legitimação se busca no direito, porque, por definição, o Estado se realiza no direito.

Compreendido como “ordem de validade”, o direito tem de garantir que a acção estadual se paute pelo respeito da pessoa e a sua dignidade, vedando, além do mais, a apropriação privada do Estado por interesses económicos, científicos, técnicos ou outros. Do ponto de vista constitucional, a garantia do direito resulta do poder do Estado, desdobrado em politico, legislativo, administrativo, judicial, pertencer ao povo, sendo por este, directa ou indirectamente exercido – “princípios democrático e da separação de poderes”.

O desenvolvimento sustentável é definido como o “tipo de desenvolvimento que permite satisfazer as necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras satisfazerem as suas” (Relatório Brundtland – 1987), e apresenta-se como a solução capaz de conciliar as dinâmicas económicas, sociais e ecológicas e como problema, em virtude da complexidade de obter essa conciliação. Dele se diz ser um “princípio normativo sem norma” (Jacques Theys).

A acção estadual de controlo e minimização de riscos ambientais que pretenda garantir o desenvolvimento sustentável, se não se quiser enraizar em intuições e medos nem ser expressão de conhecimentos científicos, também eles sujeitos a erros cognitivos e a espaços de ignorância, tem de se alterar fundamentalmente. Num Estado que se legitima no direito, a reacção a intuições e medos cientificamente explicáveis, bem como a incompletudes e deficiências de conhecimentos, é imposta pela ideia do direito. Em nome dessa ideia, há que combater a tendência para normativizar toda a acção estadual e, em particular, a tendência para formalizar juridicamente afirmações científicas com o objectivo de fundamentar a acção estadual. Porque essa formalização não torna verdadeiras nem correctas as afirmações científicas e, pior do que isso, repete, em ondas sucessivas, os erros e incompletudes que contenham. A definição, através da lei, de comportamentos com base nessas afirmações, cria a convicção junto dos destinatários de que são correctos ao mesmo tempo que introduz rigidez nos conhecimentos científicos. A prazo, são as ciências que se descredibilizam e, através do direito, se desvirtuam, embora, paradoxalmente, seja no direito que as ciências procuram salvar-se. E, ao perderem-se, arrastam consigo o direito.

O controlo e a minimização dos riscos ambientais exige a análise custo/beneficio das diferentes alternativas da acção. Ora a análise de custo/benefício define-se como a tarefa de “completa contabilização das consequências da redução do risco, em termos qualitativos e quantitativos” (Cass R. Sunstein), e apresenta-se como critério de decisão, contracenando embora com outros critérios. Insere-se no âmbito da prevenção, entendida como uma forma de preparação para a incerteza do futuro, através da redução da probabilidade de perdas ou da redução da respectiva extensão.

A análise de custo/benefício introduz coerência na acção, afastando intervenções erráticas, intuitivas ou fundadas em receios momentâneos, distinguindo o essencial do acessório. Para além disso centra-se em variadíssimos factores: racionalidade da acção, pedagogia da acção, redução do “free riding” e da promoção da qualidade e da prossecução do interesse publico, condução ou orientação comportamental, promoção do indispensável discurso cientifico interdisciplinar, elevação da qualidade de gestão do tempo da acção, combate à exclusão social, aprofundamento democrático, criatividade de soluções e densificação jurídica do principio do desenvolvimento sustentável.

Na dimensão universal e na indeterminação com que se impõe aos Estados e aos particulares, o principio da prevenção, através da analise do custo/beneficio, permite chegar ao detalhe das situações e vincular a acção a esse detalhe o que é decisivo na “questão ecológica”. Porque a racionalidade das soluções impostas por esta questão exige elasticidade da acção, que só grandes princípios jurídicos podem legitimar.

A racionalidade da norma, na abstracção e generalidade que a caracterizam, funda-se no reconhecimento da regularidade das situações da vida e projecta-se nas situações que se apresentam como concretizações do tipo legal que a norma define. Uma vez em vigor, a norma desenvolve uma específica função: perpetuar um modo de agir e os valores que lhe subjazem. Uma vez identificadas as regularidades das situações, o direito uniformiza-se impondo, através da norma, comportamentos humanos, depois de os passar pelo crivo da axiologia da pessoa, comportamentos que se repetem sempre que as subsumíveis ao tipo legal se verificarem na pratica. A norma perpetua comportamentos na comunidade e, nessa medida, pode dizer-se que o direito “agarra” o tempo, aprisionando-o.

Acresce que a norma estabiliza expectativas mesmo perante condutas não esperadas. Por seu intermédio, torna-se fácil destrinçar, nas acções humanas, as que cumprem normas e são legais das que incumprem e, logo, são ilegais. Por isso se fala no código binário da norma e na racionalidade que dele decorre.

Tudo se altera, porém, quando as informações e conhecimentos que se possuem sobre as situações não acompanham o seu evoluir e chegam com atraso. Trazer o futuro para o direito é o desafio da “sociedade de risco”. Sem tempo para obter informação e conhecimentos necessários à definição da norma, o direito e a sua axiologia impõem a ampliação da atenção às consequências da acção. A orientação da acção pelas consequências que desencadeia traduz uma racionalidade distinta da tradicional. O discurso jurídico abre-se à interdisciplinaridade e a uma renovada metódica, sem o que a acção deixa de se legitimar no direito e na sua axiologia. Uma nova hermenêutica ou método de descoberta do direito capaz de legitimar a acção, orientada pelas consequências, começa a desenhar-se. A racionalidade da orientação da acção pelas consequências assenta na capacidade de criar consensos através da argumentação, aberta e axiologicamente fundamentada, preocupada com a justiça intra e intergeracional. Trata-se de construir a racionalidade, não a racionalidade meramente procedimental e argumentativa, mas a própria racionalidade material, tendo presente uma permanente atenção aos fins – fins coincidentes com o respeito pela pessoa e sua dignidade, e que conformam a sustentabilidade ambiental do desenvolvimento.

Para além de outras ciências, a ecologia tem vindo a evidenciar a escassez dos bens no planeta que habitamos – espécies animais e vegetais estão em vias de extinção e há recursos prestes a esgotarem-se. Ora a escassez de bens naturais – como, aliás a escassez de outro tipo de bens, nomeadamente financeiros – e os problemas que lhe andam associados não se resolvem convocando a norma jurídica. Esta corresponde a um mundo de bens abundantes, como, aliás, acontece com o próprio mercado.

Enquanto o risco implica um confronto imediato da comunidade com o futuro, através das consequências dos actos que decide praticar, a escassez implica uma relação da comunidade com os bens, sentida localizadamente e no presente. Só subsequentemente se confronta com o futuro, quando se projecta em acções de compensação de desequilíbrios e repartição equitativa de bens. “Gerir a penúria” (Pierre Moor) torna-se tarefa comunitária. E nem a globalização permite pensar os bens num quadro de abundância. A “penúria” globalizou-se também.

Fixar objectivos à acção pública e deixar que as entidades e órgãos se movam num quadro valorativo alargado, construindo as decisões de forma argumentativa, apoiadas em standards comunitariamente aceites, abre as portas a um novo paradigma do direito público. Sem deixar de ser um sistema de normas e mantendo-se como ordem de validade, o direito é chamado a ser produtor de sentido de uma realidade multiforme, carente de coerência e racionalidade. Para o Governo e Administração Pública que dele depende, agir de acordo com a racionalidade situacional envolve maior responsabilidade da acção, porque os compromete na realização da justiça, ao mesmo tempo que compromete a comunidade, ao convocá-la para o diálogo. O recorte jurídico da situação, a identificação e ponderação dos interesses envolvidos e respectiva contingência decorrem de um diálogo cooperante. Realizar o direito, neste contexto de indeterminação, abre caminho à descoberta da justiça em liberdade, não só no respeito que a distância perante o outro permite, no sentido kantiano, mas, para além de Kant, na promoção desse respeito na distância perante quem, por nós será outro e só por nós poderá ser.

Tratar o igual, igualmente, e o desigual, desigualmente, na exacta medida da diferença, são duas facetas do princípio da igualdade que se completam, numa dinâmica de conflito. A “questão ecológica” procura a individualidade dos fenómenos para os compreender como um todo e lhes dar resposta ajustada, já que o realce deficiente de um aspecto da realidade pode conduzir a erros grosseiros de apreciação. Finalmente, a nova forma de agir apreende a dinâmica material do conflito entre o igual e o diferente e nela progride. Não selecciona em abstracto a igualdade, antes acompanha a evolução dos conhecimentos científicos, não confiando em observações já feitas nem adormecendo sobre reflexões passadas.

Acresce que a igualdade jurídica de tratamento, o processo jurídico de igualização de condições sociais ou económicas e o estabelecimento jurídico da igualdade de oportunidades são consequência, respectivamente, de se ter politicamente seleccionado um critério para o tratamento, de se pressupor como económica ou socialmente correcta uma igualdade só se equilibram quando o ponto de partida for igualizado. Isto significa que o discurso jurídico do princípio da igualdade não se auto-sustenta tecnicamente numa imanente juridicidade, não é produtor do sentido que o alimenta. Mas tão-pouco é uma fórmula vazia, porque a igualdade enquanto princípio jurídico radica em três garantias: a de que a fixação de um especifico termo de comparação, material, se encontra indissoluvelmente ligado a um especifico tratamento jurídico, material – critério de estabelecimento da igualdade; a de que este critério tem de ser coerente com o fim a atingir; e, finalmente, a de que esse critério tem de fundamentar, racional e suficientemente, o tratamento jurídico.

A vigência autónoma do princípio da igualdade, não formalizada na racionalidade normativa, mas materialmente vinculante em toda a sua instabilidade e indeterminação, contém os ingredientes que permitem densificar a racionalidade situacional.

O futuro entra no direito através da igualdade. Não entra, porém, por força do contrato intergeracional de prestações equitativas, ou da avaliação dos resultados da acção, como vimos que pode acontecer. Entra pelo que, como projecto público, pode ser abrangido pela igualdade, isto é, como construção do equilíbrio, em cada momento possível, entre as diferenças reconhecidas em situação e as compensações diferenciadoras. Um equilíbrio frágil, permanentemente em desequilíbrio, e, logo, sempre em construção, acompanhando nessa evolução o movimento de compreensão da igualdade em conflito com a diferença. Limitam o discurso argumentativo de compreensão da igualdade não só a construção democrática do Estado, com a sua forma de designação dos titulares do poder politico, os seus órgãos e respectivas competências e modos de agir, como ainda o procedimento administrativo de condução da acção.

O princípio da igualdade como programa de acção político volve-se em momento fundamental da condução das políticas públicas ambientais. A dimensão da igualdade, voltada para o futuro pelo discurso argumentativo, vai-se jurisdicizando, adquirindo consistência evolutiva, ao mesmo tempo que a construção vai ganhando transparência no esforço de encontrar criativamente consensos, cada vez mais alargados e profundos exigidos pela intencionalidade da acção.

A realização do direito do ambiente através de princípios jurídicos tem dois efeitos: encurtar a distância entre direito e realidade e produzir alterações na compreensão da acção dos juristas, técnicos do direito. Na verdade, a ampliação do campo de atenção do direito e a renovação das condições éticas do agir tornam os membros da comunidade participes da concretização de um vasto conjunto de princípios jurídicos que se impõem pela axiologia e pela convicção de que o “dever ser” passa por específicos comportamentos que os reflectem. A selecção dos detalhes da realidade, essenciais à conformação da acção iluminada pelos princípios jurídicos, a construção material da acção por apelo a adequados standards ambientais e a topoi argumentativos tornam a tarefa de realização do direito uma realidade cultural em construção e os juristas simultaneamente artífices e guardas de um complexo discurso argumentativo, no âmbito do qual se processa a defesa intransigente de uma axiologia de direitos através da modelação de um conjunto de deveres que só no concreto adquire total consistência.

A proximidade do direito de quem o realiza não dispensa, por isso, a presença de técnicos do direito. Não só pela necessidade de interpretar normas jurídicas, aplicando-as aos casos concretos e eliminando a distancia entre lei e factos, mas para fazer intervir na compreensão dos princípios jurídicos os valores que os fundamentam, para garantir direitos e lembrar deveres e, na conflitualidade que deles emerge, orientar o discurso, de acordo com a topoi ou pontos de vista relevantes para a decisão, sustentando a teia complexa de argumentos que conduz à “descoberta” da decisão justa, em face dos contornos dos factos e dos conhecimentos científicos actualizados, disponíveis no momento da tomada de decisão.

No novo paradigma do direito, ”questão ecológica” enquanto “questão jurídica” convoca, ao jurista compete não tanto eliminar a distancia entre a norma e os factos, mas conduzir o processo racional criativo de descoberta da solução justa, inscrita no ou nos princípios gerais do direito que os factos apelam, o que tudo é empreendido no complexo quadro de interesses conflituantes onde os direitos e deveres se inscrevem.

“A protecção do ambiente não é unidimensional” (Christian Calliess). A protecção ambiental, que também é protecção da liberdade, corresponde a uma afectação da liberdade, uma sua limitação – protecção da liberdade e afectação da liberdade correspondem-se. Compreende-se, neste contexto, que sempre que juridicamente se procura definir a protecção ambiental, essa definição faça intervir uma reflexão ética, enquanto controlo do homem sobre si próprio, num enquadramento alargado de responsabilidade pelo futuro e num plano de construção de uma justiça funda e alargada, intra e intergeracional.

A liberdade de agir é limitada em razão da protecção da liberdade, entendida em termos de contemporaneidade e em termos de futuro, e entendida também como momento essencial da protecção ambiental. Qualquer que seja o direito individual de liberdade, a segurança do respectivo exercício não se dirige só ao Estado, como acontecia no Estado liberal e no Estado social, através da acção policial, enquanto vigia a comunidade e detecta quem incumpre a lei. Em razão da protecção ambiental, a segurança do exercício da liberdade integra o modo preventivo e os deveres de cuidado que lhe estão associados. Em suma, a prevenção acompanha, no concreto, o exercício de cada direito de liberdade, limitando-o. O sentido do agir humano no novo paradigma ético, que não é só sagacidade perante a situação ambiental mas respeito para com todos e cada um dos membros da comunidade, abre caminho ao novo paradigma do direito, no qual a prevenção e os deveres de cuidado são condicionantes internas do exercício dos direitos de liberdade.

O valor Ambiente é verdadeiramente consagrado em Portugal pela Constituição de 1976. É certo que a Constituição de 1822, no art. 223/V, apontava para a necessidade de as Câmaras Municipais procederem ao plantio de árvores nos terrenos sob sua jurisdição, mas esta disposição não é mais do que um incentivo ao desenvolvimento rural. Também se deve afastar qualquer intenção ecológica no art.52 da Constituição de 1933, no qual se apelava à protecção dos “monumentos culturais”, pois apenas visava a preservação do património cultural. O art. 66 da Constituição de 1976 foi, sem dúvida, o primeiro artigo ambiental no panorama português.

A tutela ambiental, para dar um sentido útil ao art.66, terá de incidir exclusivamente sobre a preservação e promoção da qualidade dos bens ambientais naturais. O seu enquadramento sistemático é, porém, refém da integração comunitária e do respeito pelos princípios da lealdade e da uniformidade na interpretação e aplicação das normas comunitárias.

Portugal, como Estado-membro, encontra-se hoje dependente de decisões supranacionais sobre questões que tradicionalmente contribuíam para a definição do núcleo de soberania interna de um Estado…

BIBLIOGRAFIA:

- CARLA AMADO GOMES, “Textos dispersos de Direito do Ambiente (e matérias relacionadas”, II vol,, AAFDL, 2008

- JORGE MIRANDA, “Manual de Direito Constitucional”, IV, 3ª ed. , Coimbra, 2000

- MARIA DA GLÓRIA GARCIA, “O lugar do Direito na protecção do Ambiente”, Almedina, 2007

- VASCO PEREIRA DA SILVA, “Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente”, Almedina, 2005

- AAFDL, “O Ambiente entre o Direito e a Técnica”, 2003

Trabalho efectuado por:

João Ribeiro

Subturma 11

Nº 15499