sábado, 25 de abril de 2009

Direito Penal do Ambiente?

I. Introdução

Se, reconhecidamente, no campo do Direito Administrativo do Ambiente se torna necessário circunscrever o conceito de Ambiente para que a tutela e a preocupação jurídica não seja desnecessária e incomportavelmente ampla, no Direito Penal do Ambiente, uma vez que o Direito Penal, em si, tem natureza meramente subsidiária (Cfr. artigo 18.º, n.º 2 Constituição da República Portuguesa, doravante CRP), essa delimitação ganha um relevo ainda mais urgente.

Surge então a questão, na decorrência do enunciado, de se aferir qual o conceito de ambiente que assume dignidade punitiva. Parece que esta questão terá como primeiro recorte de resposta a estabilização na velha problemática sobre se a visão do nosso ordenamento jurídico, estruturalmente pensado, assenta numa concepção antopocêntrica, ou, se pelo contrário, numa visão ecocêntrica. Parece que, efectivamente, a perspectiva adoptada pelo nosso ordenamento jurídico é a perspectiva antropocêntrica, isto é, a tutela do ambiente passa por uma tutela dos direitos do homem, pelo que o ambiente será tutelado a título incidental (Vasco Pereira da Silva, Verde cor de direito: lições de direito do ambiente, Coimbra: Almedina, 2002, pp. 25 e ss; Ver também, a este respeito, o nosso trabalho, Atropocentrismo versus ecocentrismo).

Em segundo lugar, tornar-se-á necessário delimitar critérios legitimadores da intervenção penal (Fernanda Palma, Direito Penal do Ambiente – Uma primeira abordagem, in Direito do ambiente, coord. Diogo Freitas do Amaral, Marta Tavares de Almeida, Lisboa, 1994).

Os critérios enunciados por Fernanda Palma são os seguintes:

a) A necessidade de intervenção do bem jurídico – quando haja um interesse não meramente simbólico ou ideal dos indivíduos ou da sociedade e se repercute em algo distinto da mera coesão ideológica;
b) O Direito Penal só poderá intervir onde seja indiscutível a censura social do comportamento, por ser um Direito penal da culpa;
c) A não contradição ideológica com outras soluções do sistema;
d) Ineficácia de outros meios para a protecção do bem jurídico.

Pelo que fica dito, conseguimos compreender que toda a intervenção penal no Direito do ambiente acarreta grandes sacrifícios que a pura lógica finalística da ratio da sua operatividade pode ficar enviesada face a outros mecanismos, que não necessariamente administrativistas, como é o ilícito de mera ordenação social. Esta é aliás a grande discussão de fundo, uma vez que, como afirma Pedro Branquinho Ferreira Dias, “A intervenção do Direito Penal só tem sentido quando estivermos perante lesões insuportáveis de interesses fundamentais de uma sociedade e quando todos os outros aparelhos sancionatórios se revelarem insuficientes e inadequados.” (Cit. Pedro Branquinho Ferreira Dias, Breves notas sobre os futuros crimes ambientais, documento 9285, versão 1, www.dgsi.pt, Direito do Ambiente). Segundo o autor, o critério subjacente ao juízo de se aferir se será mais adequada uma tutela penal ou se, pelo contrário, é mais adequada uma tutela contra-ordenacional, assenta em saber se estamos diante de meros interesses difusos, caso em que, para o autor, fará mais sentido uma tutela contra-ordenacional, ou se estamos perante condutas, que a ser praticadas, serão consideradas fortemente lesivas de interesses comunitários com ressonância ética. O autor inclui nestes casos os danos contra a conservação da natureza e certas formas de poluição. 

II – O que é mais verde, ilícito penal ou ilícito de mera ordenação social?

O Direito das contra-ordenações ambientais surge, na acepção António Leones Dantas, como concretização de um pensamento que avistava há muito a necessidade de preenchimento do espaço em branco que deve ser deixado pelo Direito penal, dada a sua natureza subsidiária (António Leonês Dantas, Direito das contra-ordenações e o ambiente, documento 9281, versão 1, www.dgsi.pt). 

Este ramo surge nas palavras de Costa Andrade como “um aviso dirigido ao cidadão que faltou ao seu dever de colaborar na prossecução dos interesses do Estado e como medida preventiva destituída de qualquer carácter infamante” (Costa Andrade, Contributo para o conceito de contra-ordenação, in Revista de direito e Economia, Anos VI/VII, 114 Apud, António Leones Dantas, Direito das Contra-ordenações…)
A destituição do “carácter infamante” surge, desde logo, manifestado no facto de a intervenção dos tribunais surgir a título meramente subsidiário. Com efeito, teremos uma fase administrativa, inicial, e, posteriormente uma fase de impugnação ou recurso. Assim, tudo se pode resolver por vias administrativas poupando a um eventual arguido os danos provocados pelo processo penal (Nesse sentido, AAVV, Les problemes poses par le publicite donne aux actes criminels et procedures penales, Rapport rédigé pour le VIII Congrés de de L´ Association Internationale de Droit Penal, 1961, Milano, Dott. A. Giuffrè Editore, 1961; Patrick Auvret, Le Journaliste, le juge et l´innocent, in Revue de science Criminelle et de Droit Penal Compare, 3, Juil – Sept. 1996).



III – Contra-ordenações ambientais – concretização legislativa

A Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, que aprovou a “Lei-quadro das contra-ordenações ambientais” surge como a concretização do regime geral das contra-ordenações em matéria de ambiente.

A parte respeitante ao processo das contra-ordenações surge prevista nos artigos 41.º e seguintes. No título I está disposto o leque de medidas cautelares a que as autoridades administrativas podem recorrer de modo a salvaguardar os meios de prova, a saúde e a segurança das pessoas. Nota-se na previsão das várias alíneas, constantes do n.º1 do artigo 41.º, uma certa sobreposição respeitante à verdadeira amplitude de cada uma delas. Em bom rigor, como bem refere Leones Dantas, algumas destas alíneas não têm verdadeira autonomia, sendo que acabam por ser fragmentos de umas e outras. (António Leones Dantas, O processo das contra-ordenações na Lei n.º 50/2006, in Regulação em Portugal: Novos tempos, novo modelo?, Almedina, 2009, p. 774.). No entanto, ainda que se possa criticar a sistematização do catálogo, certo é que as medidas conferem às autoridades administrativas a possibilidade de inutilizar, por completo, o facto atinente à produção do efeito lesivo ao ambiente. Note-se que havendo obstrução à colocação em prática destas medidas, pode recorrer-se ao corte do fornecimento de energia eléctrica aos arguidos (Cfr. Artigo 41.º, n.º 3).

Por outro lado, o artigo 42.º prevê as chamadas apreensões cautelares. No âmbito deste preceito parece, também, ser criticável a autonomização do disposto no artigo 42.º, n.º 1, al. b), na medida em que se prevê que a autoridade administrativa pode apreender provisoriamente “licenças, certificados, autorizações, aprovações, guias de substituição e outros documentos equiparados”, uma vez que, em bom rigor, essa apreensão é procedimento normal de uma suspensão de actividade, isto é, essa apreensão já decorre, necessariamente, da aplicação de algumas das alíneas do catálogo previsto no artigo 41.º, n.º1.

Importa acrescentar que estão em causa restrições aos direitos fundamentais, uma vez que no cerne destas medidas está em latência o impedimento de que um particular possa livremente desenvolver uma determinada actividade económica. Assim, estas medidas, porque se enquadram no âmbito das medidas de polícia administrativa, estão sujeitas aos princípios constitucionais constantes do artigo 272.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP), isto é, aos princípios da necessidade, exigibilidade e proporcionalidade. É também por isso que é imperativo um dever acrescido de fundamentação e, porque são formas de acção administrativa, estão, como refere Leones Dantas, “sujeitas às formas de impugnação típicas do contencioso administrativo” (Cit. António Leones Dantas, O Processo…, p. 777).

No respeitante à notícia da infracção, notamos um preceito em tudo semelhante ao artigo 243.º do Código de processo penal (doravante, CPP), o artigo 45.º do diploma em análise. Nesse âmbito a autoridade administrativa deve levantar auto de notícia quando, no exercício das suas funções, detectar qualquer infracção às normas constantes no artigo 1.º. Assim, postula-se uma obrigatoriedade de levantamento de auto de notícia não só nos casos de flagrante delito próprio sensu ou quase flagrante delito – sendo que o primeiro se reporta à infracção que se está a cometer e o segundo à infracção que se acabou de cometer, mas também àquilo que julgamos poder designar por – através da transposição da doutrina processual penalista – presunção de flagrante delito, na medida em que se refere à verificação ou comprovação da infracção, “ainda que por forma não imediata”. Importante é, parece-nos, que esteja ainda presente a visibilidade e actualidade exigidas para esta extensão do flagrante delito. Note-se, contudo, que isto foge à lógica preceituada no CPP, uma vez que o levantamento de auto de notícia em processo penal apenas parece abranger o flagrante delito próprio sensu, atendendo à fórmula “que as autoridades presenciarem”. 

Além disso, importa referir que se prevê no n.º 2 do artigo 45.º uma figura denominada por “participação” que em tudo se assemelha ao auto de denúncia previsto no artigo 246.º do CPP, pois esta participação servirá para os casos em que a autoridade administrativa não pôde comprovar ou verificar pessoalmente a infracção. Vale aqui o alerta de António Leones Dantas, no sentido de o artigo 45.º não identificar/concretizar quem pode lavrar autos de notícia. Refere-se que é a autoridade administrativa, mas não se concretiza. Nesse sentido, é necessário recorrer-se aos estatutos orgânicos a fim de se determinar quais os funcionários que, para efeitos do artigo 74.º do diploma em análise, têm poderes de autoridade pública (António Leones Dantas, O processo…, p.785).

Outra questão, que se prende com a aplicação deste diploma, remonta ao disposto no artigo 47.º que diz respeito à obrigação de identificação e às consequências de uma eventual recusa de identificação por parte do suspeito da prática de uma contra-ordenação ambiental. Esta questão tem interesse porque no âmbito do Processo penal tem sido discutido se a recusa de um suspeito em identificar-se (Cfr. Artigo 250.º CPP), feito o pedido por parte de uma entidade de polícia criminal pode dar origem à prática de um crime de desobediência previsto e punido nos termos do artigo 348.º do Código Penal (doravante CP). (Sobre a questão, Pareceres da Procuradoria Geral da República números 13/96 (Relator: Souto Moura), 161/2004 (Relator: Esteves Remédio) e 28/2008 (Relator: Manuel Ramos) www.dgsi.pt). Parece que, na falta de norma incriminadora específica, e por comparação com as normas constantes dos artigos 141.º, n.º 3 e artigo 342.º, n.º 2 ambos do CPP, que prevêem a incriminação da recusa de identificação, não se pode, no âmbito do procedimento de identificação previsto no artigo 250.º, n.º 1 do CPP, tirar, sem mais, a conclusão de que a recusa de identificação acarretará a prática de um crime de desobediência. Ora, no âmbito das contra-ordenações ambientais, esta questão vem ser expressamente resolvida, nos termos do artigo 47.º, da Lei 50/2006, que prevê a incriminação pelo crime de desobediência no caso de o suspeito da prática de uma contra-ordenação ambiental se recusar a identificar-se (Cfr. Artigo 348, n.º 1, al. a)). Note-se que a solução legal levanta, quanto a nós, as maiores dúvidas no respeitante à sua não inconstitucionalidade. Senão vejamos: Em primeiro lugar, se se entender, como entendemos, que não existe no Direito Penal e no Direito Processual penal, numa situação materialmente idêntica à prevista no artigo 47.º, como é a preceituada no artigo 250.º, n.º 1 do CPP, uma obrigação de identificação cuja recusa não origina um crime de desobediência, então esta incriminação por um crime de desobediência aquando da recusa de identificação no âmbito da prática de uma contra-ordenação ambiental está em crassa desproporcionalidade, atentando contra a Lei Fundamental. Ora, se não se pune por desobediência a recusa de identificação no âmbito de um crime (por ausência de previsão penal nesse sentido, nos termos do artigo 1.º, n.º 1 do CP), é manifestamente desproporcional punir por desobediência no âmbito da prática de uma contra-ordenação. Em segundo lugar, como refere António Leones Dantas, “o legislador quer que as autoridades averigúem a identidade da pessoa a identificar e em caso de recusa estabelece um conjunto de mecanismos que podem realizar esse objectivo”. (Cit. António Leones Dantas, O Processo…, p. 787) É, por isso, tudo uma questão de tempo até se obter a identificação. Fará, então, sentido punir por desobediência o resultado da frustração de algo que se pode obter no mero decurso de umas horas? Parece que não.

Resta acrescentar que, como decorre do artigo 52.º, este é um procedimento essencialmente administrativo, que se quer que, preferencialmente, termine apenas com a intervenção da administração e não do tribunal. Note-se que, nos termos do n.º 2 do referido artigo, a autoridade administrativa pode revogar, total ou parcialmente, a decisão de aplicação da coima ou sanção acessória.

Prevê-se também um processo sumaríssimo, nos termos do artigo 56.º que poderá ter lugar no caso de infracções menos graves e onde a culpa do agente seja reduzida. Note-se que à semelhança do que sucede em Processo Penal, resta ao arguido, se quiser encetar por esta forma de processo, aceitar a sanção que lhe for proposta, neste caso pela autoridade administrativa. Temos assim uma manifestação do bargain americano.

Conclusões

1. O direito penal tem natureza subsidiária, facto que obriga a que a sua actuação no domínio do Direito do ambiente, no domínio de qualquer outro ramo do Direito, ou mesmo no próprio domínio da vida social, seja muito limitada. Limitada, essencialmente, pela dificuldade no reconhecimento de determinados bem jurídicos merecedores de tutela jus-penal. Isto porque os bens jurídicos tutelados têm em vista uma perspectiva demasiado atropocêntrica, uma vez que o bem jurídico será expressão da reconhecida necessidade de tutela de um bem que em princípio será sentida por todos. Ora, quando reconhecemos que o nosso Direito do ambiente é um Direito assente numa perspectiva antropocêntrica moderada, já é sinal de que o Direito Penal e o Direito do ambiente não podem “jogar” na perfeição, como se duas rodas dentadas se tratassem. 

2. É claro que existem vários tipos incriminadores, designadamente o artigo 279.º para a poluição e o artigo 278.º para os danos contra a natureza, ambos do CP, mas o que se quer aqui referir é que provavelmente a solução passa por uma prevenção mais eficaz à luz do sistema das coimas, menos temeroso que a punição por ilícitos criminais. Os ilícitos criminais nunca irão desaparecer, mas já se chegou à conclusão de que faz mais sentido manter a dualidade crime vs. Contra-ordenação do que a extinta “mesa tripartida”: Crime vs. Contravenção vs. Contra-ordenação.

3. Da breve análise à “Lei-quadro das contra-ordenações ambientais” surgem algumas incongruências de técnica legislativa e um problema que pode, efectivamente, levantar problemas quanto à sua não inconstitucionalidade (a identificação dos suspeitos). Mas o certo é que este diploma representa o aflorar de uma opção que por tornar mais eficaz a prevenção, dado o menor estigma que comporta o ilícito de mera ordenação social face ao ilícito criminal, parece ser também mais verde, mais capaz de levar a cabo a tutela do ambiente que deve ser, sem dúvida alguma, o escopo de qualquer mecanismo legal nesta matéria.

4. Assim, e concluindo, parece que deverá ser repensada, no futuro, a articulação entre o Direito Penal do ambiente e as contra-ordenações ambientais. Se o Full-enforcement, não é desejável, mesmo atendendo aos tipos penais já existentes, porquê não prevenir certas áreas sensíveis, e merecedoras de alguma tutela preventiva, com mecanismos que não sejam desproporcionais ao benefício geral que se pretende ver assegurado?