quarta-feira, 10 de junho de 2009

O valor e o regime dos planos especiais de ordenamento do território


Os planos especiais de ordenamento do território, desde logo previstos na Lei de Bases da política de ordenamento do território e de urbanismo (art. 8º al) d e art. 20º nº 5 da Lei 48/98 de 11.8) e no regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial (art. 42º e seguintes do DL 380/99), são tarefa da administração central e visam sujeitar as áreas delimitadas de um ou vários municípios, à disciplina de um instrumento fundado em relevante interesse nacional, cuja repercussão espacial estabelece regimes de salvaguarda de recursos e valores naturais, privilegiando assim uma vocação que se direcciona para a defesa da permanência dos sistemas indispensáveis à utilização sustentável do território. São, por isso, um modo de definição dos usos e do regime de utilização do espaço.

Esta tipologia de planos, sofre uma tipificação taxativa em quatro espécies (art. 42 nº 3 DL 380/99), o que à partida parece indicar que o objecto sujeito a tutela são interesses públicos específicos. Assim, são eles (i) os planos de ordenamento das áreas protegidas; (ii) os planos de ordenamento de albufeiras de águas públicas; (iii) os planos de ordenamento da orla costeira; (iv) e os planos de ordenamento dos estuários. A estes, acresce também o plano de ordenamento de parque arqueológico, instituído pela Lei 107/2001 de 8.9 (Lei do Património Cultural), que no seu art. 75 nº 7, prevê que estes planos devam ser integrados nos planos especiais[1].

Ora, uma vez que a nossa concepção jurídico-constitucional aponta para o ambiente como um “bem público” que abrange, entre outros, as áreas protegidas, as águas públicas e a orla costeira, poderíamos ser tentados a afirmar que o ambiente puro e simples, objecto do poder de planificação territorial enquanto dirigido ao ordenamento material do mundo físico, seria aquilo que GIANNINI apelida como um “bem ambiental”, cujo regime é baseado na imposição de vínculos de conservação da substância dos bens[2]. Uma tal concepção, que Alves Correia considera “imperialista”[3], não parece de acolher. Não tanto por considerações dogmáticas relativas às relações do direito do ambiente com o direito do urbanismo[4], mas mais pela consideração pragmática de que o principal (senão mesmo o único) objectivo dos planos especiais são a tutela de um interesse especifico: a protecção dos recursos hídricos, zonas ribeirinhas, orla costeira e outros locais com interesse particular para a conservação da natureza, cuja protecção se deve compatibilizar com a normal fruição pelas populações das potencialidades especificas daqueles espaços.

Destarte, o completo signo da ratio legis relativa aos planos especiais de ordenamento do território, pode ser visitado em vários preceitos do DL 380/99 v.g. art. 12º relativo à identificação dos recursos territoriais com relevância estratégica para a sustentabilidade ambiental, e assim como para a caracterização dos planos especiais de ordenamento do território como planos funcionalmente dirigidos ao estabelecimento de usos preferenciais, condicionados e interditos, através da determinação por critérios de conservação da natureza e da biodiversidade, para que tais propósitos se compatibilizem com a fruição pela população. Da mesma forma, os arts. 43º e 44º do citado diploma, respeitantes ao conteúdo dos planos especiais do ordenamento do território, assertivamente relacionam o seu conteúdo material de “salvaguarda de recursos e valores naturais e o regime de gestão compatível com a utilização sustentável do território”, com o fito de salvaguardar da mesma forma os “objectivos de interesse nacional com incidência territorial delimitada bem como a tutela de princípios fundamentais consagrados no programa nacional da politica de ordenamento do território não assegurados por plano municipal de ordenamento do território eficaz”.

No que toca ao relacionamento dos planos especiais de ordenamento do território com outros instrumentos de gestão territorial, é mister salientar que funcionam aqui em conjunto, os princípios da hierarquia, da compatibilidade e da conformidade[5]. Assim, os planos especiais prevalecem sobre os planos municipais e intermunicipais de ordenamento do território (art. 10º nº 4 Lei 48/98 e art. 24 nº 4 DL 380/99), mas enquanto a subordinação dos planos municipais ao Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território é pautada por um princípio de compatibilidade, a relação hierárquica dos planos especiais face aos municipais é aferida por um princípio de conformidade, dado o grau de elevada concretização das disposições daqueles. Contudo, os planos especiais já podem ser alterados mediante novo Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território, Plano Sectorial ou Plano Regional, que estabelecem os princípios e as regras orientadoras da disciplina a definir nos novos Planos Especiais (art. 23 nº 2 DL 380/99), funcionando aqui, portanto, uma espécie de princípio da hierarquia, mitigado pela possibilidade de as normas dos Planos Especiais alterarem os planos sectoriais ou regionais anteriores. Tal consideração deve-se à reserva feita na parte final do art. 23 nº 3 (“salvo o disposto no nº 2 do art. 25”), que em última análise, abre as portas à prevalência dos Planos Especiais, com uma obrigação: estes “devem indicar expressamente quais as normas daqueles [plano especial anterior, plano sectorial ou regional de ordenamento do território preexistente] que revogam ou alteram[6].

Escrutinando a articulação dos planos especiais com os outros instrumentos de gestão territorial, cabe referir que a supletividade destes planos em relação aos planos municipais (art. 42 nº 2 DL 380/99 e arts. 8º al.) d e 25 nº 3 da Lei 48/98), parece-nos que não revela tanto uma “demissão” do governo em matéria de planeamento – ainda que esta construção se resuma num ónus criado sobre as Autarquias – mas se resuma antes a um imperativo de descentralização da prossecução dos interesses nacionais à escala local[7], porquanto os instrumentos de gestão territorial convocam simultaneamente interesses nacionais e interesses locais, cuja responsabilidade cabe aos municípios, em harmonia com o princípio da subsidiariedade, da autonomia das autarquias locais e da descentralização administrativa, condensados nos arts. 6º Nº 1, 235 e 237 da Constituição Portuguesa. Por isso mesmo, trata-se de um domínio onde se verifica uma concorrência de atribuições e competências entre a administração central e local (art. 65 nº 4 CRP).

Atendendo a que os planos especiais (assim como os municipais) são dotados de uma eficácia plurisubjectiva, i.é, são planos que produzem efeitos jurídicos directos e imediatos em face dos particulares (art. 11 nº 2 Lei 48/98 e art. 3 nº 2 DL 380/99), na medida em que contêm prescrições que influenciam decisivamente os direitos destes (v.g. no que concerne ao modo de utilização do solo)[8], deve ser promovida uma discussão pública que dê efectividade a uma participação (preventiva) a todos os interessados, aquando a decisão de elaborar um plano especial (art. 48 DL 380/99).

Por tudo isto, somos da opinião que, o valor e o regime dos planos especiais de ordenamento do território encerram um princípio segundo o qual, o interesse do ambiente é um dos objectivos dos instrumentos de planificação territorial. A planificação não pode mais ter unicamente a organização urbana como molde paramétrico[9], devendo antes, adequar-se à prossecução de objectivos de protecção ambiental a uma escala global. A isto, a planificação hodierna dá hoje uma resposta: os instrumentos de gestão territorial dos interesses públicos, zelam pelos recursos e valores naturais, bem como pelo respeito e finalidade da protecção e valorização ambiental dos espaços rurais e urbanos.

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[1] Isto não livre de críticas pois que, um importante sector da doutrina é assertivo a considerar que esta classificação viola claramente o princípio da tipicidade dos planos especiais, devendo o património arqueológico ser antes incluso na categoria de planos sectoriais, que são considerados pela nossa legislação sobre planeamento territorial, como uma categoria aberta. Ora isto porque são planos que sempre “tem um âmbito supramunicipal e pelas suas características e objectivos, requerem um instrumento de planeamento de natureza nacional”. Cfr. Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, Vol. I, 3ª Ed., Coimbra: Almedina, pp. 336-337, nota 45.
[2] Cfr. M.S. GIANNINI, Ambiente: Sagio sui Diversi suoi Aspetti Giuridici, RTDP, 23, 1973, p. 23-26.
[3] Cfr. Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, Vol. I, 3ª Ed., Coimbra: Almedina, p. 96.
[4] Cfr. Idem, p. 96. A crítica que Fernando Alves Correia faz, é no sentido de que “a penetração do direito do ambiente nos outros ramos do direito não pode legitimar a conclusão de que estes se transformem meros capítulos daquele” assim como “as influências recíprocas entre o direito do ambiente e o direito do urbanismo, não podem levar à consideração deste último como uma simples derivada do primeiro”, rematando por fim que “aqueles dois direitos são enformados por princípios comuns, mas também há entre eles uma relativa autonomia de fins, de meios e de objecto”.
[5] Com esta explicação, Cfr. Isabel Abalada Matos, POOC e PMOT: notas sobre a relação entre os seus conteúdos materiais, RJUA, N 18/19, 2002/2003, pp. 51-55. Seguindo de perto esta autora, Cfr. Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, Vol. I, 3ª Ed., Coimbra: Almedina, pp. 422-429.
[6] Parece útil referir que esta articulação de regimes já foi alvo de avaliação junto do STA em acórdão de 11.11.2004 (processo 873/2003), onde se concluiu que “os planos especiais e os planos regionais têm níveis de incidência e objectivos próprios e distintos, sem prejuízo de dever ser assegurada a necessária compatibilização entre eles, a concretizar, no que aos planos especiais respeita, pelo dever de indicar expressamente quais as normas que revogam ou alteram”. Contudo a indicação que os planos especiais devem respeitar “contem um sentido de recomendação ou ordenação não cominativo”. Em anotação a este aresto, Cfr. AA.VV, Fernanda Paula Oliveira, CEDOUA, Anotação ao acórdão do STA de 11.11.2004, Nº 13, p. 153-154, considera que “a falta de indicação pelo plano especial das normas preexistente PROT que altera ou revoga pode constituir um indício de que não ocorreu a ponderação das opções constantes doo PROT no procedimento de elaboração do plano especial”. Conclui depois a autora, que “no caso de se comprovar um tal indício, serão inválidas as normas do plano especial”. Em sentido contrário, pronunciou-se Cfr. Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, Vol. I, 3ª Ed., Coimbra: Almedina, p. 424-425, nota 166, ao considerar que, na linha do acórdão, “a ausência de indicação por um plano especial de ordenamento do território das normas do PROT preexistente que altera ou revoga não acarreta, só por si, a invalidade das normas do plano especial que operam tais alterações ou revogações”, ainda que a existência dessas indicações realize uma importante função de “certeza e segurança jurídica quanto às normas vigentes na área e constitui um sintoma de que, no procedimento de elaboração do plano especial, foram devidamente tomadas em consideração e ponderadas as disposições do PROT aplicáveis na área ou em parte da área a abranger pelo plano especial”.
[7] A ideia de aproximação da administração às populações, realiza o principio que está consignado no art. 267 nº 1 CRP e no art. 10º CPA, que assenta no pressuposto de que as necessidades colectivas são melhor satisfeitas através das pessoas colectivas administrativas mais próximas daqueles que as experimentam.
[8] Muito crítico em relação à natureza jurídica “regulamentar” (art. 42 nº 1 DL 380/99) dos planos em causa é Cfr. Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, Vol. I, 3ª Ed., Coimbra: Almedina, pp. 499ss., ao considerar que ao legislador “não cabe resolver problemas de índole teórica e doutrinária”, como também é um problema cuja base de análise se “deve centrar no conteúdo e não na sua forma”. O mesmo autor conclui mais à frente (pp. 514ss.) que estes planos não apresentam, afinal, um conteúdo homogéneo, sendo antes um misto de regulamentos – onde são definidas as regras jurídicas respeitantes à ocupação, uso e transformação do solo abrangido pelos planos –, e de plantas – que representam a expressão territorial das regras jurídicas que compõe o regulamento. Tudo isto tem uma enorme importância no que respeita à impugnação de normas (art. 7 nº 2 DL 380/99 e art. 268 nº 5 CRP), bem como à suscitação de uma possível inconstitucionalidade junto do Tribunal Constitucional.
[9] Não descurando que foi aqui que o desenvolvimento histórico do urbanismo se deu: na polis.