quarta-feira, 10 de junho de 2009

Apesar de Copérnico, o Cosmos ainda gira à nossa volta?


A concepção de homem como medida de todas as coisas (protagonizada na Grécia antiga por Protágoras, na sua obra “A verdade”), só hodiernamente tem vindo a ser posta em causa no âmbito sociopolítico e, consequentemente, a nível jus-ambiental[1]. Apenas na década de 1960, é que a consciência (a que muitos chamam “descoberta”) da vulnerabilidade da natureza à intervenção do homem, redundou em um conjunto de medidas juridicamente vinculantes e que de forma preventiva e planificada abarcasse o escopo de minimizar os efeitos perturbadores do processo civilizacional[2] (isto ainda que tais regras surgissem sem grande articulação conjunta, o que actualmente continua a levantar problemas de sistematização).

Ainda que poucos publicistas portugueses se pronunciem sobre o assunto, parece-nos que um dos principais fundamentos da emergência da “causa ambiental”, se deve a factores económicos. Efectivamente, é nos finais da década de 1950 e mais expressivamente na de 60 que as economias europeias e mundiais mantêm uma estabilização crescente das suas economias. É também através desta estabilização que vários economistas tem vindo a sugerir (com recurso à teoria da curva de Kuznets Ambiental), que o crescimento económico não se alcança sem sustentabilidade ambiental, mas também a protecção ambiental não é alcançável sem crescimento económico. Assim, os países mais pobres não se poderiam dar ao luxo de promover a qualidade ambiental como primeira prioridade, porque esta afectaria o crescimento económico e aumento da produtividade. Por esta via, só depois de algum sucesso no caminho da prosperidade é que se poderia envidar pelo recurso a mecanismos de redução da degradação ambiental[3].

Nesta senda, e com um espírito pioneiro[4], a Constituição portuguesa de 1976, consagrou expressamente o direito ao ambiente como um direito (art. 66) e uma tarefa (art. 9º al.) d e al.) e) fundamentais do Estado[5], beneficiando, como tal, do regime dos direitos liberdades e garantias. A pergunta que se nos suscita não pode deixar de ser a seguinte: que corolários poderemos retirar daqui?

Para aqueles que vejam o sentido deste direito numa perspectiva exclusivamente antropocêntrica-utilitarista, i. é, numa concepção segundo a qual, a natureza não tem um valor intrínseco em si mas enquanto utilidade susceptível de satisfazer as necessidades do homem (perto, portanto, daquilo a que o Professor Vasco Pereira da Silva designa de “total inconsciência ecológica”), a resposta ao sentido da vinculação e tutela do direito do ambiente, será que a obrigação do homem perante a natureza terá cariz meramente residual[6], ecoando a célebre teoria de John Locke, segundo o qual, o bem natural é de per si inútil e apenas o homem, com o seu trabalho, tira a natureza da sua inutilidade, sujeitando-a e moldando-a ao seu poder[7]. Destarte, sempre seria de concluir que “os direitos das árvores” não passam, no máximo, de “deveres dos homens”.

Para aqueloutros, que perfilham uma concepção ecocêntrica (a também chamada, deep ecology), o ambiente é um bem comunitário cuja guarda compete a toda a humanidade, não só como forma de salvaguardar os seus interesses mas para reconhecer o valor imanente que o ambiente tem. A leitura que Freitas do Amaral faz do dever-ser ambiental, ao considerar que “hoje em dia parece certo que já não é mais possível considerar a protecção da natureza como um objectivo decretado pelo homem em benefício exclusivo do próprio homem (…)” (e que “a natureza [deve] ser protegida como valor em si e não apenas como objecto útil ao homem”)[8], é reveladora desta forma de “pensar verde”. A opção por uma visão ecocêntrica do mundo corresponde, nestes moldes, à visão de comunhão entre homem e natureza na medida em que a supremacia do homem (expressa através da capacidade cognitiva deste último), não pode levar a que, reiteradamente, os interesses imediatos deste prevaleçam. Por isso, “de acordo com uma ética ecocêntrica holística uma acção é boa quando tende a preservar a estabilidade e integridade da natureza e é má quando não contribui para esse objectivo”[9].

Pela nossa parte, vale a pena salientar que a doutrina – embora com concepções filosóficas diversas –, converge no sentido em que a nossa Lei fundamental tem cunho antropocêntrico[10]. Ora, é sintomático disto mesmo expressões como “ambiente de vida humano sadio” ou “qualidade de vida” a que o art. 66º CRP dá guarida. É este entendimento (expresso p. ex. em Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit. p. 348) que conduz a que a concepção antropocêntrica do ambiente seja o elemento justificador da consagração do direito ao ambiente como direito constitucional fundamental.

Por outro lado, os sociólogos descrevem a sociedade actual – pós-industrial –, como uma “sociedade de risco”, na medida em que corre riscos “ecológicos” e “genéticos”, caminhando de forma inelutável para a destruição das condições de vida naturais e sociais das pessoas[11]. Muito embora seja de sublinhar que, de um ponto de vista político, o Estado está em certa medida limitado na sua capacidade de acção[12], parece-nos que, independentemente do dualismo antropocentrismo/ecocentrismo, a consagração expressa, a nível constitucional, do direito ao ambiente como um direito fundamental, veio dar um contributo importante ao ordenamento jurídico (que serve os homens) e vem também contribuir para uma maior protecção do ambiente (que deve servir o ambiente de per si).

Em formulação sintética apreciativa, a perspectiva ecocêntrica, ao tomar por impulso a personificação da natureza, corre o risco de não conseguir compatibilizar as necessidades humanas com as exigências do meio ambiente. Mesmo as visões ecocêntricas que não as da deep ecology, parecem só conseguir as suas demandas filosóficas de iure condendo, já que nos ordenamentos jurídicos actuais não há atribuição de direitos subjectivos a “entes” desprovidos de personalidade jurídica. O que acontece é coisa diversa: há, em meu entender, uma aglutinação dos deveres sócio-juridicos humanos para com a natureza, como forma de salvaguardar o equilíbrio ecológico do planeta[13]. O modo como a utilização dos recursos naturais e a intervenção do homem tem vindo a ser realizada, em especial desde a revolução industrial, tem contribuído, de forma paulatina, para colocar em causa esta estabilidade ecológica. Já para o Prof. Vasco Pereira da Silva, o ambiente sempre será tutelado de forma reflexa, já que “as normas reguladoras do ambiente se destinam também à protecção dos interesses dos particulares, que desta forma são titulares de direitos subjectivos públicos”[14].

O direito ao ambiente, que fica vinculado ao regime dos direitos, liberdades e garantias (art. 17 CRP), tem também uma estrutura bifronte na medida em que não só implica a pretensão de cada pessoa a não ver afectado o seu direito a um “ambiente sadio” (devendo ter acesso a todos os meios indispensáveis para proteger e garantir a tutela do direito), mas implica também que o Estado elabore um conjunto de prestações positivas de modo a que sejam criadas formas de melhorar o equilíbrio ecológico.

A visão antropocêntrica mitigada por um princípio ecológico[15] parece ser aquela que, a meu ver, melhor realiza a tutela e conformação do ambiente protegido do homem pelo homem e satisfaz a emergência do “paradigma da preservação” face aos excessos do “paradigma do ambiente-cowboy”.

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[1] A necessidade premente de responder aos abusos do homem sobre a natureza levou a que alguns autores considerassem que a protecção do ambiente fosse hoje, uma tarefa inevitável do estado moderno: um estado de ambiente. E isto porque, dada a “infância” do direito do ambiente, este funcione, nas palavras de Vasco Pereira da Silva, como um “autêntico laboratório do direito administrativo. Vasco Pereira da Silva, Responsabilidade Administrativa em matéria de Ambiente, Lisboa: Principia, 1997, p. 8-9.
[2] José de Sousa Cunhal Sendim, Responsabilidade Civil por Danos Ecológicos, Da Reparação do Dano Através de Restauração Natural, Coimbra Editora, 1998, p.85.
[3] Com várias referências, Fernando Araújo, Introdução à Economia, 2004, pp. 1015ss.
[4] Muito embora já não ignorasse o movimento internacional de então que já contava o a realização de importantes convenções internacionais como seja a Convenção africana para a protecção da natureza e dos recursos naturais de 1968 ou a “histórica” declaração da conferência das nações unidas sobre o ambiente humano, de Estocolmo, realizada em 1972.
[5] O que constitui uma relativa originalidade em direito constitucional comparado.
[6] Numa perspectiva económica, José Cunhal Sendim, cit., p. 87ss., explora o sentido da capacidade de aproveitamento e do valor económico do bem ambiente para o homem, sintetizando assim a opção antropocêntrica-utilitarista.
[7] Assim, Luís Filipe Colaço Antunes, O Procedimento Administrativo de Avaliação de Impacto Ambiental, Coimbra, 1998, p. 55-56.
[8] Apud, Diogo Freitas do Amaral, Introdução ao Direito do Ambiente, Lisboa, 1994, p.13.
[9] Com referências, José Cunhal Sendim, cit., p. 94.
[10] Nesse sentido, José Cunhal Sendim, cit., p. 103; J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da Republica portuguesa anotada, 1993, pp. 347-350; Freitas do Amaral, cit., 1994, p.13 (quanto à lei de bases do ambiente); Vasco Pereira da Silva, Verde Cor de Direito, 2002. pp. 25-35
[11] José Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2004, p.63.
[12] Tema outro que nos levaria a outro debate e à discussão da ideia de que o Estado está hoje limitado perante os fenómenos da mundialização dos riscos ambientais e a consequente incapacidade de intervir de modo isolado à escala planetária. O pensar global e agir local parece ser hoje a prática usual, uma vez que as nações soberanas, através de convenções multilaterais, têm vindo a concatenar ideias em conjunto como forma de alcançar práticas e métodos comuns no âmbito da sua jurisdição.
[13] A concepção de direito da natureza como dever do homem, parece, na minha opinião, encaixar perfeitamente com a ideia de normas legais de conduta impositivas ou proibitivas mais ao encontro com a estrutura bifronte dos direitos fundamentais, pois que, os sujeitos ficam necessariamente adstritos à prática ou abstenção de um facto, v.g. proibição de cortar árvores em determinado local ou obrigação de utilizar catalisador nos automóveis.
[14] Vasco Pereira da Silva, Verde Cor de Direito., p 27
[15] Neste sentido, Vasco Pereira da Silva, sup. Cit., pp. 29-35.